sábado, 31 de julho de 2010

São Paulo


A primeira actuação do coro em Londres era um desafio gigantesco, pela importância da Catedral de S. Paulo e, literalmente, pela escala monumental daquela igreja, cercada pela City mas bem visível do Tamisa e suas margens.
A manhã foi ocupada com passeios em pequenos grupos e reunimo-nos a seguir ao almoço para fazer o trajecto de autocarro até S. Paulo. O acesso dos autocarros até à zona do colégio nunca foi muito fácil. Estacionavam pelas ruas próximas e depois era um jogo de adivinhação, com tanta gente à procura do autocarro.
Quando chegámos à catedral, os nossos acompanhantes foram dar um passeio pois faltava muito tempo e não tinham acesso à zona restrita onde iríamos circular e trabalhar.
A catedral tem um piso inferior, uma cripta, em toda a sua extensão, com lojas, bar-restaurante, casas de banho, uma capela para grupos mais reduzidos e a sala de ensaio. Como os coros ingleses cantam em cadeirais, num conjunto de assentos e estantes de madeira, mais ou menos ornamentada e iluminada, as suas salas de ensaio antecipam essa logística, reproduzindo em U pelo menos as estantes, geralmente em pinho. Os assentos estão quase sempre ausentes, até porque as estantes não são ajustáveis. São feitas para se cantar de pé e o espaço nestas salas, em edifícios históricos, nem sempre abunda.
Atravessámos a zona das lojas e apresentámo-nos no local indicado, com todos os elementos devidamente identificados. Entramos para essa sala, que tinha a dita configuração de estantes de pinho em U, encaixadas num piano de quarto de cauda. A sala tinha as paredes repletas de caixas de partituras, um pequeno órgão de tubos e casas de banho ‘privativas’.
Alguém nos veio saudar e dar as boas vindas em nome da catedral. Fizémos a nossa preparação vocal e passamos uma frase ou outra. De seguida vestimo-nos e esperamos a indicação para subir para a catedral para o ensaio de colocação.
A entrada no cadeiral fez-se directamente por uma porta lateral. O coro tomou os seus lugares (em cada actuação havia um mapa detalhado com o lugar de cada um) e foi-me apresentado o organista.
Um dos desafios era cantar com o coro em duas metades acompanhado por um órgão gigantesco que tem a consola (e o organista) num plano mais elevado (corresponde a um 1º andar) e os tubos bastante mais acima. Em geral, as pessoas só identificam o órgão com as duas caixas de madeira trabalhadas e tubos dourados, mas, quando se visita a cúpula, podem ver-se tubos espalhados pelas galerias superiores, em especial os enormes 32 pés.
Mas o ensaio com o jovem organista foi, como esperava, tranquilizador. Um profissional que, do seu posto, e seguindo-me através de uma câmara de filmar, pôs aquela gigantesca máquina no nosso andamento, rigorosamente no meu tempo, só através do gesto, e ficou disponível para qualquer alteração que eu entendesse necessária. Não se perdeu em considerações ou sugestões. Fez o que dele se esperaria – acompanhar bem.
Depois veio o celebrante que tomou o seu lugar para ensaiar connosco os diálogos. Ao contrário das respostas ao canto do presidente na liturgia católica, aos diálogos nestas evensong responde-se a vozes. São frases curtas, mas incisivas. O encadeamento destas frases suscita um canto com atitude. Foi nesse sentido que nos esforçámos na nossa preparação e este pequeno ensaio agradou aos nossos anfitriões, que nos perguntaram há quanto tempo cantávamos em evensong. Na verdade era a primeira vez.
Treinámos o cortejo de entrada e saída da igreja e voltámos a descer à cave para uma pausa na sala de ensaio na cave. À hora definida, subimos e formámos cortejo numa parte lateral de onde saímos com os outros ministros em direcção ao cadeiral.
Nestas celebrações há os tais diálogos, pelo menos um salmo, leituras e, intercalado nestas, o canto dos dois cânticos evangélicos que os católicos utilizam respectivamente em Vésperas e Completas, o Magnificat e o Nunc Dimittis. Cantámos uma das imponentes versões de Stanford. Era o momento alto do ponto de vista musical e litúrgico, e o momento mais característico deste tipo de celebrações em concreto. Já perto do fim da celebração, é costume cantar um anthem, i.e., um motete em vernáculo, não necessariamente em inglês. Tinha visto várias vezes cantar em alemão ou francês nestes momentos e por isso não hesitei em propor uma peça portuguesa. Cantámos Sangue de Cristo, de Manuel Faria, que é uma peça notável e impressiva, simultaneamente com a base popular e de século XX que convinha, e o resultado foi muito bom.
Fim de celebração. Cumprimentos do celebrante que elogiou muito o coro, dizendo que estava perfeitamente dentro do espírito destas liturgias e tinha tido uma performance muito boa. As portas estavam abertas para quando quiséssemos voltar. Poucos dias depois da nossa chegada a Lisboa, recebemos esta nota de Fr. Jason Randell, responsável pela organização da vida litúrgica da Catedral:
The quality of the singing was exceptionally high and our worship was much enriched by your contribution. We appreciate all the time and effort which you and the Choir must have put into the visit and wishes to thank you for helping us maintain a constant round of musical services while the Cathedral Choir have been on holiday.
We much enjoyed having you with us and hope that you and the rest of the choir enjoyed the experience of singing in St Paul’s. As I mentioned, should you be ever back on tour this way again we’d very much like to welcome you back to sing Evensong for us.

Regresso ao colégio, noite livre, sessão de fotos, descanso.














PS: Todas as fotos na igreja foram tiradas no ensaio. Nenhuma foi tirada durante a celebração.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Londres

Dia 30 de Julho de 2009 o coro partiu para a sua digressão a Inglaterra. Não sabia nessa altura que seria a sua última digressão, mas tinha consciência de que esta etapa correspondia a um certo patamar, que dizia do seu percurso, da sua história e das suas capacidades. A simples partida, com dois concertos e três celebrações na agenda, já era, apesar de toda a adrenalina pré-eventos, uma conquista.
O programa incluía efectivamente três celebrações em Londres – uma Evensong na Catedral de S. Paulo, outra na Catedral de Southwark, ambas anglicanas, e uma Missa na Catedral de Westminster, católica. Fora de Londres, o programa incluía dois concertos, ambos no mesmo dia, um dos quais em Oxford e outro no sul, em Arundel, correspondendo às nossas ligações, respectivamente, ao Prof. Owen Rees e ao Renaissance Choir.
No conjunto era um programa altamente diversificado, que nos exigia um certo à vontade em contextos muito diferentes e apresentação de reportório adequado a cada um deles.
Nos concertos privilegiámos naturalmente a música de autores portugueses, como embaixadores que sempre deveremos ser da nossa cultura quando estamos fora de portas. Já nas celebrações foi necessário recorrer a uma missa e a motetes renascentistas para a Catedral de Westminster, na linha da sua prática dominante na liturgia quotidiana, e a salmos, Magnificat, Nunc Dimitis e diálogos próprios das liturgias da palavra que constituem as Evensong anglicanas.
Mas este primeiro dia foi dedicado apenas à deslocação e à acomodação do coro. Partimos ao fim da manhã da Portela para Heathrow, onde estava a nossa espera um autocarro com uma guia, uma figura sui generis que resolveu pelo caminho contradizer as indicações que eu dei ao grupo em matéria de precauções contra a gripe. Sempre fiz questão, no mais simples concerto que implicasse uma deslocação de autocarro a outra localidade, que as pessoas não fossem num registo de excursão recreativa, desbaratando a sua energia e a sua voz a falar alto, etc. Perante a responsabilidade de cantar nestes locais numa cidade como Londres não podia deixar de ser exigente até ao fim da ultima actuação, e a descontracção com que esta senhora dizia ao microfone que a gripe só preocupava os portugueses conseguiu-me irritar, mas os seus cabelos brancos tiraram-me a hipótese de a contradizer.
Ficámos alojados num colégio, na zona de Kensington, a uns minutos de Notting Hill e este primeiro dia foi para ‘avaliar o terreno’. Uma boa meia hora para o autocarro tentar aceder ao pátio do colégio, por entre vielas estreitas e postes, para não carregar com as malas de mais longe. Distribuição de quartos, senhas de refeição, e a propriamente dita numa cantina modesta mas simpática. O perímetro do colégio incluía a nossa residência, em altura, com vistas (e ouvidos) para a linha de metro ao ar livre e, dos andares mais altos para a digna envolvente à zona, um campo de jogos, um pequeno jardim, uma biblioteca, um convento, e a cantina no prédio principal, com a sua fachada civilizada, que incluía uma bela capela neogótica, dando para a calma de Kensington square. Há meses, quando lá voltei, percebi que esta capela, católica, tem celebrações para surdos-mudos, o que é um indicador de uma pastoral digna desse nome...
A noite foi tranquila, para a maioria, com uns passeios a pé pelas redondezas, até ao Royal Albert Hall. No dia seguinte a 1ª actuação era só à tarde, pelo que havia oportunidade para turismo ou descanso durante a manhã.
A reportagem fotográfica ficou a cargo de Vanda Abreu, que ao serão nos brindava com uma mini-sessão no seu portátil com as fotos do dia. São dela as fotos deste e dos posts seguintes.








quinta-feira, 29 de julho de 2010

Na véspera da digressão


No dia 29 de Julho de 2009 o coro teve o seu último ensaio antes da Digressão a Inglaterra, e, como em todos os últimos ensaios antes das saídas, foi altura de verificar que nada faltava: os célebres caderninhos com o programa ao detalhe feitos pelo Miguel (capa na imagem), com indicações de reportório, horas de estar, sair, chegar, mudar de roupa, mapas, indicações turísticas etc; as capas, as partituras, os cds para vender, os programas para distribuir, as roupas para as celebrações, as roupas para os concertos, as oferta para os anfitriões, etc.
Para trás ficavam meses de preparação, na reserva dos lugares e eventos, avião, autocarros, alojamento, refeições dos coralistas, acompanhantes...
Devo referir que os locais onde cantámos, sobretudo nas celebrações, nos forneceram com meses de antecedência guiões exaustivos sobre as celebrações e o tempo de preparação, com indicações tão precisas como a que porta estar, quem nos recebe, onde nos encaminha, quantos minutos tem o ensaio e em que sala decorre, quantos minutos temos para ir à igreja fazer o ensaio de colocação, a que horas virá o celebrante ensaiar com o coro os diálogos que temos de cantar com ele, quando e onde vestir, ensaios das procissões de entrada e saída pelo mestre de cerimónias. Recebemos também atempadamente as folhas que são distribuídas à assembleia, com os textos e traduções do que o coro canta, as músicas do que a assembleia deve cantar etc.
Enfim, uma sociedade evoluída e organizada.
E esse era o ponto: cantar em Inglaterra é, parece-me, o maior desafio que um coro não inglês, e, em especial, um coro de um país latino (periférico...) pode enfrentar. Isto porque em Inglaterra há diariamente boa música em todo o lado, nas igrejas, nas salas de concerto, por toda a parte. E o panorama das igrejas é, de facto, um panorama de alto nível, onde a música não é um elemento decorativo que tanto se pode ter como não ter, ou ter de má qualidade. A música está no centro da acção celebrativa, e o caso mais paradigmático é o das evensong, onde o coro canta frente a frente, num cadeiral, rodeado de assembleia, também disposta frente a frente. Canta salmos intimistas ou de revolta com a assembleia atenta ali a um passo, a qual transporta para as ambiências bíblicas onde havia, como no nosso tempo, guerra e paz, confiança e desespero.
Então e a assembleia, fica só a ver e a ouvir? Fica sobretudo a participar ouvindo, mas se for o caso (num domingo ou dia de festa) lá tem o seu hino que no fim todos cantam como cá não se canta o hino nacional, porque cantar lhes é natural e não uma habilidade para alguns amestrados. Cantar é natural, como é natural que alguns dediquem ao canto a sua vida profissional e nas igrejas se ofereça o que de melhor se pode fazer, os coros as grandes peças, a assembleia os seus corais, com não menor convicção.
Isto fez com que, para além de toda a preparação musical, que não foi pouca, e que implicou um substancial reforço do coro para cantar em espaços tão grandes e nesta logística específica, tivéssemos ensaiado a pensar nestes contextos em concreto. Já há muito tempo que o coro ensaiava dividido em dois semi-coros, mas nem sempre havia equilíbrio para ter 2xSATB. Agora, porém, e nos ensaios com reforços, cantávamos em duas metades de 4 vozes cada, a uma distância razoável, tentando recordar a que distância estariam os bancos do cadeiral da gigantesca catedral de S. Paulo, medidos a passos, a partir das imagens da internet e da memória. Este último ensaio foi, por estas razões, na própria igreja dos Jerónimos, e não na sala habitual de ensaio, pois assim poderiamos aproximar-nos da escala, da complexidade acústica e da logística de S. Paulo.
Foram fornecidas também aos coralistas cópias de boas gravações das peças que se iriam cantar, sobretudo das mais ligadas ao contexto específico da liturgia anglicana, para estudo individual. Por incrível que pareça, o que deu mais trabalho a ensaiar foi um salmo simplicíssimo a 4 vozes que se tinha de cantar na cadência do texto, tal como cantamos os salmos em latim ou vernáculo nas vésperas. É que não basta saber ler inglês, é preciso mesmo entrar na forma e no estilo.
Não sei se chegou a chocar alguém que um coro católico cantasse numa liturgia anglicana. Mas lá há hoje em dia uma excelente relação e colaboração entre as igrejas e também entre os coros. Nalguns dias do ano o coro da Catedral de Westminster vai cantar à Catedral de S. Paulo e vice-versa, numa troca não só de lugares mas de rituais e sua música própria.
E no dia a seguir lá fomos de armas e bagagens, cheios de frascos de álcool com medo da gripe A. Preocupação quase ridícula a um ano de distância, mas estávamos no ponto do alarmismo, com os noticiários a contar diariamente o número de infectados, que atingia no Reino Unido o maior recorde.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

O lugar do coro

Há precisamente um ano, falei no Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, nas vésperas da digressão a Inglaterra. Evitei sempre referir, nestas ocasiões, o caso concreto do coro de Belém, mas não dos factores que me e o influenciaram (referências, inspirações…). Por isso arrisquei ilustrar a minha apresentação com um exemplo distante da nossa realidade, mas exemplar para o que pretendia demonstrar, o caso da Catedral de Westminster.
Parti da questões de fundo do encontro: Como é bom cantar. Cantar porquê? Cantar o quê? Cantar como? e fiz a aproximação à realidade dos coros: Como é bom cantar num coro – O coro ajuda-nos a perceber e a vivenciar a ligação da Liturgia à Vida. O coro é um instrumento musical, mas feito de pessoas. É um grupo social e humano, com tudo o que isso implica. Porquê cantar em coro? Para que serve um coro? O que canta o coro? (características da música coral). Como canta o coro? Com arte e com alma… Podemos dispensar a alma? E a arte? De que falamos quando falamos de arte?


A minha mensagem principal era esta: «O coro é parte da assembleia, insiste-se, e está correcto, no sentido em que o coro emerge da comunidade, e por isso faz parte dela, e assume um papel muito concreto de a servir. Mas o coro é, desde sempre, um grupo especializado, que assume partes musicais que lhe são próprias, que a assembleia não pode nem deve assumir. No fundo, se fizessem a mesma coisa, não precisaríamos de um coro e de uma assembleia. »
«Defendo por isso que o coro, embora formado a partir da assembleia, é uma realidade distinta desta, e que a participação do coro não tem de impedir a participação da assembleia. Pelo contrário tem de apoiá-la. Neste caso, usamos portanto, palavras distintas para conceitos distintos, realidades distintas.»
Propus então uma viagem virtual à Catedral de Westminster em Londres, uma igreja com cerca de 100 anos e com um dos melhores coros do mundo, tão antigo, aliás, como a própria igreja, de acordo com o projecto dos seus fundadores que constituiram o coro quando se faziam ainda os alicerces do templo.


Para esta viagem, recorri ao discurso directo do Master of Music, o Maestro da Catedral, Martin Baker, a partir de uma comunicação que tinha feito no Vaticano, a 5 de Dezembro de 2005, a convite da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
Baker começa por citar o Catecismo: «Pela Liturgia da Terra, participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste, celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos, nos dirigimos […];por meio dela, cantamos ao Senhor um hino de glória, com toda a milícia do exército celestial.» CIC 1090
Depois uma citação da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia: «Guarde-se e desenvolva-se com diligência o património da música sacra. Promovam-se com empenho, sobretudo nas igrejas catedrais, as «Scholae cantorum». Procurem os bispos e demais pastores de almas que os fiéis participem activamente nas funções sagradas que se celebram com canto na medida que lhes compete.» SC 114
E explica que a frase latina ‘actuosa participatio’ incorpora tanto o aspecto contemplativo como o aspecto activo da participação, recorrendo ao livro Cantai ao Senhor um cântico novo (infelizmente nunca traduzido para português), do Car. Ratzinger, em que se lamenta que a frase conciliar ‘participação activa’ tenha sido erroneamente interpretada como activismo externo ou exterior.
Quanto à Catedral de Westminster, Baker afirma que aí o tesouro da Música Sacra é preservado através de um coro que participa diariamente na liturgia (vésperas e missa). Tem noção de que se trata de uma situação única e excepcional, pois o coro é um elemento essencial, sempre presente na liturgia da catedral.
Citando Raztinguer, diz que «o fim da Liturgia é auxiliar a Palavra de Deus a efectuar uma maior compreensão dos mistérios da Fé. A participação na Liturgia é uma participação na Liturgia Cósmica. Quando o Logos de Deus é comunicado, necessariamente pelos meios imperfeitos da linguagem humana, o essencial da mensagem permanece inatingível e ininterpretável. Os dois modos do atingir são o silêncio e a música. A Música Sacra torna o Logos acessível à assembleia ao mesmo tempo que eleva os ‘corações ao alto’. Como meio para a Palavra de Deus, ela permite alcançar uma maior expressão das verdades contidas no texto, uma real participação interior e uma participação activa na liturgia sagrada.»
Desde a fundação da Catedral, em 1903, liturgia e música foram duas realidades mantidas em prática, com o mais alto nível possível. A Música foi sempre vista como parte integrante da Liturgia.
E Baker exemplifica como a música do coro pode expressar de forma mais completa a intencionalidade e o sentido dos textos sagrados.
O Kyrie, por exemplo, nos ritos iniciais da missa. Na frase ‘Senhor, tende piedade de nós’ há uma aceitação de que somos pecadores suplicantes que precisam da misericórdia divina, confiantes que as nossas preces serão ouvidas. Mas o sentido das palavras do Kyrie é profundo e dificilmente assimilado se simplesmente ditas.
Não é fácil atingir esse sentido, se nos temos de lembrar de uma frase melódica que acaámos de ouvir e temos de repetir, seguindo ou não uma folha de cânticos por exemplo. Também a simples recitação do texto permite pouco ou nenhum lugar para a contemplação interior do mistério. Pelo contrário, a tradição de cantar um Kyrie polifónico, explora os sentimentos do texto, enquanto dá o tempo necessário para a absorção completa das suas implicações para os fieis.
O maestro confirma que, «de acordo com o estatuto especial que lhe é atribuido, o canto gregoriano e polifonia renascentista são os 2 estilos que constituem a maior parte do reportório do coro da catedral.Porque esta música reflecte hoje como quando foi composta a mesma relevância do texto. A este tesouro juntamos música apropriada dos períodos barroco, clássico, romântico e obras propositadamente encomendadas aos compositores dos nossos dias.»
E continua:
«Fazemos questão de assegurar que o coro é visto como parte integrante da liturgia. O coro e os ministros entram em conjunto enquanto o coro canta o introito gregoriano do dia. Os elementos do coro são vistos pela assembleia enquanto se dirigem ao local onde desempenham a sua função litúrgica. Através do canto na procissão de entrada, a própria palavra é iluminada pela música e pela acção.


O coro canta num retro-coro atrás do altar principal, no extremo Este da Catedral.
O coro da catedral não poderia ser mais diferente de um coro de concerto.
Enquanto que é visto no introito a caminho do seu local, não é completamente visível durante a missa e por isso não é uma distracção para os fiéis. O maestro está escondido por detrás de um ecran de mármore que o separa da zona do altar.
Mas mais importante, a música que o coro canta, embora de grande mérito artístico, é oferecida no contexto da liturgia, permitindo aquela compreensão de que se alimenta a verdadeira participação da assembleia.»
No entanto, de forma a assistir os fiéis na sua participação e para que a liturgia se torne um veículo bem sucedido da palavra, o sacerdote tem de partilhar estes objectivos e cantar os textos da missa para criar unidade na celebração.
Muitas missas que se dizem cantadas não o são. Quando muito são missas com cânticos.
« A natureza essencial da música na Liturgia deve focar os textos da missa como 1ª preocupação para o tratamento musical. No entanto, a prática generalizada das celebrações corais que historicamente são grande parte da tradição litúrgica romana desapareceram quase por completo. Mas a Igreja precisa de redescobrir esta tradição, tanto no papel da música sacra como no papel e nível de excelência dos seus coros.»
E citando de novo o Papa: «Através do coro é conseguida uma maior transparência no louvor dos anjos e por isso uma mais profunda e interior adesão ao seu canto, do que muitas vezes seria alcançado pela aclamação e canto da assembleia.»
Embora o coro da catedral não seja um coro de concerto, os seus membros são músicos profissionais. Os rapazes vivem e estudam na escola do coro da catedral.
Os tenores e os baixos são cantores profissionais. E as razões para isto são claras: «Esta música potencialmente transcendente, poderia ser afectada por uma execução de nível inferior e perder parte do seu efeito. O coro formado apenas na comunidade dos fiéis é provavelmente insuficiente para executar esta música de forma adequada à catedral que, como sede da diocese, é vista como um marco de excelência! No concreto, a prática diária de vésperas corais e missa seria impossível à base de voluntários.»


«Finalmente, temos de concordar que o esforço para levar a liturgia terrena ao encontro do divino é digno dos mais elevados padrões possíveis.
À luz deste objectivo, é verdade que apenas poucas igrejas estão em posição ou acham apropriado ter um coro profissional.
Existem outros tipos de coros de níveis diferentes que cantam exemplarmente em paróquias do mundo inteiro.
Muitos destes são capazes de iluminar a palavra de forma como descrito até aqui, mas é importante que as catedrais promovam a música ao mais alto nível para que o trabalho admirável dos coros paroquiais possa ser alimentado e suportado pela tradição catedralícia.»
Mesmo em Westminster há uma organização variada. Coros visitantes são regularmente convidados a cantar na catedral e o coro da catedral também faz visitas a outras igrejas. Além disso têm um coro de voluntários de toda a diocese que canta uma vez por mês na catedral. Há também um coro gregoriano voluntário, de vozes femininas. E promovem-se fins de semana corais abertos para cantar obras como o Messias.
E Martin Baker termina referindo que, de momento, as situações de excelência parecem ser isoladas: «Uma orientação mais clara da hierarquia da Igreja encorajaria e fortaleceria algumas instituições e a renovação de tudo aquilo que é bom.
Dada a direcção que a liturgia tomou, desde os anos depois do Concílio Vaticano II, talvez seja necessário reavaliar e propor estas directrizes à luz de 40 anos de experimentação.»

Com alguns exemplos musicais da própria catedral de Westminster, este discurso directo de Martin Baker foi mais que suficiente para fazer passar a mensagem que eu queria passar, com toda admiração e até algum choque que ela pudesse provocar no nosso contexto, e naquela audiência em particular.
E recorri a Santo Agostinho para um ultimo ênfase sobre a participação efectivamente activa: «Como eu chorei ao ouvir os vossos hinos, os vossos cânticos, as suaves harmonias que ecoavam pela vossa igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, derramando a verdade no meu coração.Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas rolavam-me pela face; mas faziam-me bem.» Santo Agostinho, Conf. 9, 6, 14
A reacção das pessoas foi bastante positiva e as perguntas pertinentes. Fiz ainda mais uma incursão ao aspecto do lugar do coro, demostrando plantas de catedrais, e tentando mostrar que não há soluções tipo e que o essencial e o acessório devem ser pesados, pelas partes envolvidas, em cada contexto em concreto.
O ponto de partida foi referir que em Português podemos usar a palavra coro, tanto para designar o grupo dos cantores como o lugar onde cantam, especialmente nas igrejas históricas (coro alto, coro baixo), mas os ingleses e franceses têm palavras diferentes. The Choir (cantores)/ The Quire (lugar onde cantam), La chorale / Le Choeur (idem).
Referi ainda que por toda a Europa os coros de igreja cantam com vestes corais, como distintivo de pertença ao grupo e à sua função, e ilustrei com fotos.
Mostrei ainda fotos dos Pequenos Cantores da Catedral de Regensburg, na Alemanha e num concerto ao actual Papa na Capela Sistina, do coro de Westminster em visita ao Papa João XXIII e da visita do Papa João Paulo II à Catedral de Westminster, posando com o coro.
No 2º dia falei de uma questão prática importante, o reportório do coro, que é uma parte importante da identidade de cada coro, mas que decorre antes de mais da sua da missão. Depois vim para Lisboa, pois nesse dia à noite tive o ultimo ensaio com o coro para Inglaterra e no dia seguinte partimos para a nossa última digressão.
Dois dias depois o Coro de Santa Maria de Belém cantou a sua última missa, precisamente no Quire da Catedral de Westminster em Londres. E um mês depois da digressão, o Pároco de Belém informava-me que o coro tinha de procurar na igreja outro lugar para cantar, pois a capela-mór ia ser devolvida à sua anterior função de presbitério.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Canto e Música

Em 2004 falei no Encontro de Nacional de Pastoral Litúrgica sobre O Ministério do Canto e da Música. Já estava a faltar ao encontro há alguns anos, porque manifestamente sentia que a interacção entre o encontro e eu tinha parado. Na área da música, que era a que me dizia respeito, já não ouvia nada de novo, e, por outro lado, havia tudo aquilo com o que entretanto pude tomar contacto em viagens e, tudo um pouco relacionado, a experiência de Belém. Ir falar pela 1ª vez ao encontro, revestiu-se, por isso, de uma responsabilidade enorme. E assim tentei, com humildade mas com assertividade dizer o que pensava do estado das coisas, porque efectivamente me habituei a reflectir sobre elas. Congratulo-me de ter citado várias vezes o eminente teólogo Ratzinger, numa altura em que o seu nome causava ainda algum desconforto em muitos meios eclesiais, um ano antes, portanto, da sua eleição como Papa:
«Deixou-se de lado a grande música de Igreja em nome da 'participação activa', mas essa 'participação' não pode, talvez, significar também o perceber com o espírito, com os sentidos? (...) Não existe nada de 'activo' no intuir, no perceber, no comover-se? Não há aqui um diminuir o homem, reduzindo-o apenas à expressão oral,exactamente quando sabemos que aquilo que existe em nós de racionalmente consciente e que emerge à superfície é apenas a ponta de um iceberg, com relação ao que é a nossa totalidade? (...) Questionar tudo isso não significa, evidentemente, opor-se ao esforço para fazer cantar todo o povo, opor-se à 'música utilitária'. Significa opor-se a um exclusivismo (somente tal música), não justificado nem pelo Concílio nem pelas necessidades pastorais. (...) A única, a verdadeira apologia do cristianismo pode reduzir-se a dois argumentos: os santos que a Igreja produziu e a arte que germinou no seu seio. O Senhor torna-se crível pela magnificência da santidade e da arte, que explodem dentro da comunidade crente. » Card. Joseph Ratzinger, in Diálogos sobre a Fé.
E algumas das minhas recomendações:
1) É necessária uma tomada de consciência e um grande investimento na educação musical e estética dos responsáveis pela música litúrgica;
2) Culto e Cultura são a grande aposta no serviço do desenvolvimento integral do homem;
3) A formação do clero deve promover-se na linha de preparação técnica e estética
continuada, de uma pastoral mais esclarecida, para descobrir talentos musicais na comunidade, distinguir o que tem qualidade e contribuir para o equilíbrio entre os dons e as necessidades;
4) A formação dos outros ministros do canto e da música é fundamental. Sem este investimento nas pessoas não poderemos esperar grandes obras (ao menos um órgão e um bom coro em cada catedral);
5) O papel dos serviços nacionais, diocesanos e paroquiais de música deve ser dinâmico e mobilizador, através de publicações, preparação de tempos litúrgicos e escolas de música;
6) É preciso repensar a participação activa da assembleia;
7) É preciso repensar o lugar da estética na liturgia;
8) É preciso repensar a diversidade dos lugares;
9) É preciso reaproximar a Igreja e os artistas;
10) É preciso devolver à Igreja a defesa e a promoção do património musical sacro.
Tanto quanto sei, foi a primeira vez que um leigo falou sobre música naquele encontro, e, visto a esta distância, penso que fiz um diagnóstico e apontei um programa. Sobre a capacidade de realização, a experiência de Belém fala por si.
A apresentação em power point, que foi ilustrada a cada passo por exemplos musicais, pode ser consultada aqui.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica


Durante vários anos participei no Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, que se realiza em Fátima, por volta da última semana de Julho. E se o refiro aqui é porque houve uma correlação forte com a história do coro pelo menos em 3 pontos. Primeiro, porque o ENPL influenciou imenso a minha visão da Liturgia e, por isso, os primeiros anos da vida do coro e a sua actividade. Segundo, porque tive oportunidade de ir duas vezes ao ENPL como conferencista e nessa altura o que disse era já fruto de uma reflexão continuada sobre a relação entra a música e a liturgia, que se alimentava da e alimentava a minha experiência com o coro e com os Jerónimos. Por fim, porque a ultima intervenção no encontro, precisamente há um ano, se dirigiu a membros de grupos corais, e versou fundamentalmente sobre o coro na liturgia, seu lugar e sua função. Nas vésperas de partir com o coro para uma digressão a Inglaterra, tomei como exemplo singular, o coro da Catedral de Westminster, em Londres, onde cantaria com o coro no sábado seguinte, para ilustrar o que pensava, ou melhor, o que julgo que a Igreja pensa sobre o papel do coro na liturgia. O que pensa, mas não necessariamente o que faz, pois o que vemos à nossa volta é, infelizmente, o oposto do que os documentos da Igreja recomendam. Paradoxalmente seria confrontado eu mesmo, logo a seguir a Agosto, com o problema do lugar do coro. Problema que, tanto quanto tinha percebido até então, nunca o fora. Mas seria assumido como tal, face a valores mais altos que se levantariam.
A primeira vez que fui ao encontro foi em 1988 (25 a 29 de Julho). Era a XIV edição e tema «A reforma litúrgica - 25 anos depois da Constituição sobre a Liturgia». Fiquei impressionado com o que ouvi e não menos com o que pude celebrar. De facto, as celebrações, sobretudo as missas na basílica, eram impressionantes, pelo envolvimento e pela participação da assembleia. Levei vários anos a processar esta informação, e a perceber que não poderia ter uma assembleia destas em Belém. Outras há que até poderão cantar mais que a de Fátima, mas a assembleia do encontro é a todos os títulos atípica, porque é formada por pessoas interessadas na pastoral litúrgica (leitores, músicos, acólicos, padres...). Foi nesse encontro que conheci alguns sacerdotes que compuseram abundantemente para a liturgia, entretanto já falecidos, como Mons Fernandes da Silva, o Pe. M. Simões e o Cón. Carlos Silva.
O encontro do ano seguinte foi porventura o que gostei mais de todos. O tema era «Celebração e Espaço Litúrgico». Recordo uma sessão extraordinária com D. Albino Cleto em torno do tema das novas igrejas e da disposição do espaço litúrgico. Foi sem dúvida um encontro decisivo para a minha reflexão sobre o espaço litúrgico extraordinário em que tinha o privilégio de fazer música, a Igreja dos Jerónimos, e para a minha luta para que esse espaço fosse preservado e promovido como tal e não um campo devassado pelo turismo inclusive durante as celebrações.
Quando fui aluno pela segunda vez do curso de música litúrgica do serviço de música sacra, desta vez na vertente de órgão, estava a concluir o conservatório e toquei algumas vezes nas missas na basílica. O grande órgão estava já num estado de avançada degradação mas permitia ainda um contributo muito impressivo sobre aquela assembleia tão participativa. Tanto quanto me recordo, toquei pela ultima vez um improviso sobre o hino do Grande Jubileu, no ano 2000 portanto.
Em 2004 voltei ao ECNL desta vez para falar no painel Escola de Ministérios sobre O Ministério do Canto e da Música, durante duas tardes seguidas, no Grande Auditório do Centro Paulo VI seguida de uma 3ª para debate conjunto com as outras áreas temáticas.
Finalmente, em 2009, todo o encontro foi dedicado à Música na Liturgia e tive a meu cargo de novo no painel Escola de Ministérios duas tardes na casa de N Sra do Carmo. Já não pude ficar para o debate porque nesse dia estaria já em Londres com o coro e na noite do 2º dia ainda havia um ultimo ensaio em Belém.
Desta sequência nos ocuparemos nos próximos dias, antes de uma pausa para férias.

domingo, 18 de julho de 2010

Cantata popular na FIL


Em bom rigor, não conheci o Cón. Ferreira dos Santos em Fátima mas em Lisboa, sensivelmente pelo final da década de oitenta. Simplesmente não associei logo os dois contextos em que o vi nas primeiras vezes.
Através de uma antiga coralista que cantava em Belém muito antes do coro existir, e cantava também no Coro de Lisboa da Rádio Renascença, com o qual, aliás, passei umas férias corais, assisti nos Jerónimos e na Aula Magna, não me lembro por que ordem, a uma grande cantata em honra de Sílvia Cardoso. Retive o impacto impressivo da grande massa coral, constituída por vários coros, da Banda da PSP, e da música em si. Tive acesso à partitura coral e ainda hoje consigo cantar de cor algumas melodias. O autor da obra e o maestro era o Pe. Ferreira dos Santos.
Quando já o conhecia bem, dos encontros de Fátima, assisti a outra cantata da sua autoria, em honra de Mons. Alves Brás, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. A mesma linguagem, a lembrar as cantatas de Britten, mas, com a devida distância, com um carácter popular, na expressão do próprio autor.
Por isso fiquei com grande entusiasmo quando em 1999 bateu à porta o convite para o Coro de Santa Maria de Belém participar numa nova apresentação dessa cantata, intitulada “Mãos ao trabalho, coração em Deus” no âmbito do Centenário do nascimento de Mons.Alves Brás. A peça tinha sido substancialmente modificada, na componente instrumental, e a apresentação seria na Antiga FIL da Junqueira dia 18 de Julho, no Auditório do Centro de Congressos de Lisboa, em colaboração com vários coros, sob a direcção de Ferreira dos Santos.
Esse entusiasmo vinha da experiência de assistir às cantatas referidas, mas, não menos, do peso que Ferreira dos Santos tinha no reportório do coro e da influência da sua figura na minha visão da música litúrgica, que procurava imprimir ao trabalho em Belém.
Mas não foi uma experiência nada gratificante. A organização apresentou imensas deficiências: os ensaios de conjunto foram escassos, os primeiros até no grande pavilhão da FIL, com uma acústica impensável para esta função, a logística foi uma descoordenação, com instrumentos a circularem nas instalações da FIL com grande atraso, e no ensaio geral a obra estava tudo menos pronta. Foi preciso inclusivamente atrasar a hora do concerto, com o público à espera, para fazer a apresentação possível, nestas condições.
Ficou um amargo de boca não ter podido mostrar ao coro outro Ferreira dos Santos que não a pessoa tensa e preocupada, a quem pediram um trabalho difícil mas não proporcionaram as condições mínimas. Em todo o caso vieram depois convites para apresentações individuais do coro, de sua iniciativa, e, ainda há um ano ele me dizia, «tenho de escrever uma obra para o teu coro!», do qual tinha a melhor impressão e esperança.
A última coisa que o Cón. Ferreira dos Santos deixa de fazer, quando é obrigado a reduzir a sua actividade, é compôr. O resultado é mais de um milhar de cânticos para a Liturgia, os últimos compilados em 3 volumes de salmos e cânticos evangélicos para as laudes e as vésperas de domingo, sob o título Canto Perene, com melodias arrojadas e ambiências inusitadas.
Há quem se refira à sua obra litúrgica como uma obra demasiado directa, tonal, polifónica, não reparando talvez que ele seguiu uma abordagem diferente para a missa e para a Liturgia das horas, e também uma adequação às circunstâncias de cada encomenda (aos efectivos disponíveis, etc). As observações facilitistas sobre o seu trabalho, que descuram esta distinção entre um reportório mais coral para a missa e um mais monódico para o ofício, são, por isso, semelhantes às críticas que fazem dos escritores aqueles que não leram as suas obras, ou dos cineastas os que não viram os seus filmes.
A acrescentar a esta militante escrita musical litúrgica, o Cón.Ferreira dos Santos empreendeu então em várias obras corais sinfónicas para ocasiões festivas, como é o caso do Requiem à Memória do Infante D. Henrique (o 1º requiem coral sinfónico em português, apresentado na Batalha na presença das mais altas autoridades do Estado), e as cantatas populares As Obras de Misericórdia, A Criação, o Bom Pastor, S. João de Deus, o Paraíso…
Uma vez disse-me, despudoradamente, que 90% da música que se compõe para a Liturgia será esquecida com o tempo. Espero que uma boa parte do seu trabalho possa perdurar um pouco mais, mas receio bem que o seu prognóstico esteja certo.

sábado, 17 de julho de 2010

Assembleia Constituinte

No dia 17 de Julho de 2001, teve lugar a Assembleia Constituinte da Associação Cultural Coro de Santa Maria de Belém. Onze anos depois de existir, como movimento integrado na Paróquia, o coro constituiu-se como uma entidade autónoma. Ainda estudou a hipótese de erigir essa entidade no quadro do Direito Canónico, como associação de fiéis, mas era uma situação demasiado complexa e optou por se constituir como associação cultural sem fins lucrativos. Na prática foi uma confirmação daquilo que já era a envergadura da sua actividade, numa altura em que tinha de se relacionar com organismos do Estado e outras entidades.
Para garantir a colaboração com a Paróquia, foi celebrado na mesma altura um protocolo de colaboração, no qual a paróquia cedia uma sede ao coro e este assegurava o canto na missa solene durante o ano e dias de festa.
Houve quem se interrogasse, naquela altura, porque é que um coro fundado por uma pessoa e já com o nível que tinha, era posto nas mãos de um colectivo, que decidiria quem geria o coro, e o rumo que este seguiria. De facto, não foi fácil a operacionalização do projecto associativo mas foi um passo imprescindível. A mesma pessoa se interrogava, na Assembleia Geral que decidiu a extinção do coro, em Outubro de 2009, num momento em que ninguém estava disponível para tomar a gestão da associação, porque é que a associação não se mantinha, mesmo inactiva, ou era 'oferecida' à Paróquia, para que, com o mesmo nome, esta pudesse fazer o que achasse melhor.
Mas não foi essa a leitura do colectivo. E, de facto, quando não somos capazes de viver em Igreja, ao menos que não deixemos de viver em democracia.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ferreira dos Santos

O Coro trabalhou apenas uma vez com o Cón. Ferreira dos Santos, juntamente com outros coros de Lisboa, na apresentação de uma cantata popular em honra de Mons. Alves Brás, na FIL da Junqueira. Foi uma pena que este tenha sido o único contacto directo, porque não foi de modo nenhum ilustrativo do que é a sua pessoa e da real influência que teve no coro.
Conheci o Cón. Ferreira dos Santos há sensivelmente 20 anos. Foi em Fátima, num dos primeiros encontros nacionais de pastoral litúrgica a que fui. Não me lembro exactamente se no primeiro ou no segundo, pois a ideia que tenho é que da 1ª vez ele estava doente e falou sentado, numa postura muito recolhida, mas da 2ª vez estava já com todo o seu vigor, revelando-se uma pessoa extrovertida e muito determinada. Talvez nem tenha simpatizado à partida com essa forma de estar, mas foi sol de pouca dura, pois rapidamente passei à admiração, que se mantém até hoje, não obstante a controvérsia que, como é próprio das grandes figuras, gera sempre à sua volta.
A aproximação fez-se num jantar em Fátima, mas depois fui conhecer o Cónego no seu ambiente natural, o Porto. Fui a uma missa nova na Igreja da Lapa, onde é reitor, e deu para perceber que estava numa igreja diferente, onde é patente a ordem, a organização, a limpeza e onde todos os domingos a igreja se enche de hora a hora para as várias missas.
Voltei pouco depois, com mais tempo. Pude ver a diversidade das missas, onde havia um coro polifónico na missa solene, um coro gregoriano na das 11h, um coro das empregadas do hospital na de domingo à tarde, um coro de crianças e flautas na de sábado… uma sinfonia. Conheci minimamente as instalações, onde havia um órgão de tubos para estudo.
O cónego levou-me à Sé, onde pude ver o magnifico órgão instalado em 1985 sob a porta da entrada, mas também os dois órgãos históricos da capela-mor. Uma Sé com 3 órgãos a funcionar, como poderíamos ter em Lisboa, se não tivessem feito o que fizeram nos anos 60. Pelos corredores da Sé havia órgãos electrónicos, usados nas aulas da escola diocesana. Ali mesmo ao lado, um pequeno prédio encostado à Sé era a sede do Coro da Sé, onde noutra visita assisti a um ensaio do Requiem de Bontempo (o actual maestro Cesário Costa era o acompanhador regular dos ensaios). Enfim, tudo aquilo me falava de um mundo até então desconhecido.
Mas o mais relevante era mesmo o trajecto do cónego. Depois dos estudos de música em Portugal foi para Munique estudar Música Sacra como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Já era padre nessa altura e essa oportunidade abriu-lhe completamente os horizontes.
Quando voltou, ‘negociou’ com o Bispo do Porto, na altura ainda a mítica figura de D. António Ferreira Gomes um conjunto de iniciativas que entendia ser necessário empreender, para renovar a música litúrgica na diocese. A saber:
• Criar um coro de referência para a Sé, um coro polifónico formado de pessoas preparadas de toda a diocese, para cantar nas celebrações do bispo e dar a conhecer, em concertos na Sé e um pouco por toda a diocese, o património coral sacro;
• Organizar encontros de preparação abertos aos membros dos coros paroquiais em vários pontos da diocese;
• Criar um Boletim de Música Litúrgica, para dar a conhecer novo reportório;
• Dotar a Sé de um grande Órgão de Tubos;
• Criar uma escola Diocesana de Música Sacra;
• Promover a reforma da música nos seminários diocesanos.

Tudo isto era já uma realidade consolidada quando o conheci, e por isso passei a seguir atentamente o que se fazia no Porto. Assinei a Voz Portucalense, por onde me guiei sempre para a preparação dos tempos litúrgicos e das celebrações, assinei o Boletim de Música Sacra, do qual o coro cantou, seguramente mais de metade do reportório de 150 números, e passei a ir ao Porto com regularidade, para me refrescar.
Sei que em Lisboa fiquei conotado com esta ligação, mas a alternativa era o deserto ou a ficção.
Continuei também a acompanhar o cónego nos encontros nacionais de liturgia e, mais de perto, nos cursos de música sacra de Fátima. Por iniciativa sua, fui convidado por duas vezes a falar nesses encontros, e o coro foi convidado para cantar na Sé de Lisboa no âmbito de um congresso internacional sobre órgãos, e também para dar um concerto no encontro da pastoral litúrgica de 2008, que não pode aceitar por ser a seguir à digressão a Roma e a gravação de um CD.
Fui várias vezes aos concertos do aniversário do órgão da Sé do Porto e assisti à inauguração do grande órgão da Igreja da Lapa, hoje o maior órgão do país. Não assisti propriamente ao dia da inauguração, que foi notícia, com a confraria do vinho do porto a levar pipas de vinho em carros de bois para a Lapa e a servirem vinho a partir do tubo maior do órgão, mas estive no ciclo de concertos inaugural e voltei várias vezes para ouvir esse órgão e outros que entretanto foram sendo instalados noutras igrejas do Porto, num efeito de contágio que se traduziu numa renovação a todos os títulos excepcional no país.
À medida em que viajava pelo estrangeiro, parecia-me sempre que a igreja da Lapa não ficava em Portugal, mas algures na Suíça, na Áustria, na Alemanha ou em Inglaterra, e isto não apenas pelo esmero com que a igreja se apresenta mas pela sua organização, pela sua vida cultual e cultural, constituindo-se num pólo de atracão eclesial em toda a zona do Porto.
No início dos anos 90, o Cónego foi responsável pelo envio de vários jovens a estudar na Alemanha, onde fizeram os seus estudos superiores em Órgão, Direcção Coral e Composição. Alguns foram meus colegas e/ou professores nos cursos de Fátima. Mais tarde foi responsável pela criação dos primeiros estudos superiores de Música Sacra em Portugal, ao criar a Escola das Artes, na Universidade Católica, com estudos superiores em Música, Restauro, Comunicação e Imagem, ilustrando uma visão estratégica e uma amplitude de pensamento infelizmente pouco comum.
Para além disto havia os grandes eventos: o cónego compôs várias cantatas populares para grandes efectivos corais e instrumentais, que apresentou em Lisboa (nos Jerónimos, na Igreja do Coração de Jesus, na FIL), em Fátima e, naturalmente, no Porto.
O que é que isto tem a ver com a história do coro de Belém? Tudo O coro cantou imenso reportório litúrgico de Ferreira dos Santos, mais do que de qualquer outro compositor; aderiu ao figurino dos cânticos em tríptico, com antífona para grande coro, refrão e estrofes para pequeno coro, um esquema que cultivou e promoveu e com o qual o coro cobriu grande parte do ano litúrgico; teve acesso a reportório de outros compositores publicados no Boletim, com destaque para Fernando Valente e Fernando Lapa (com este último teve mesmo, podemos dizê-lo, a máxima identificação no que respeita a música coral litúrgica em português); inspirou-se na Lapa (como noutras igrejas do estrangeiro) para a prática musical litúrgica que promoveu em Belém.
Esta nota tem, como se percebe, uma acentuada marca pessoal. Sem conhecer o Cón. Ferreira dos Santos eu talvez não tivesse sonhado o que sonhei, e tentado tornar alguns sonhos realidade. Sem o seu testemunho talvez nunca tivesse acreditado que a música sacra tem um papel determinante e que é dever da Igreja em primeiro lugar, e não do Estado ou de qualquer outra entidade, reconhecê-lo, promovê-lo e estimá-lo (isto é válido para o património físico, como os órgãos, e para aquele mais imaterial que é a música quando se faz e o património humano que são as pessoas que fazem a música!). De facto, durante este tempo todo acreditei na Igreja com letra grande, acima de qualquer paroquialidade, e no extraordinário potencial evangelizador da Música.
Se Portugal tivesse tido, neste tempo, pelo menos 10 pessoas como esta na música sacra, a realidade seria bem diferente e o futuro bem mais encorajador.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Os três cónegos

Este blogue pretende ser uma leitura sobre história do Coro de Santa Maria de Belém, centrada na sua actividade, mas referindo também pessoas, instituições e acontecimentos que influenciaram essa história e/ou a forma como os promotores do coro conceberam e concretizaram o projecto.
Hoje falamos de três padres que foram determinantes na minha abordagem da Igreja, da Liturgia e da Música, e, dessa forma, da visão que fui construindo e prosseguindo sobre o papel da Música na Liturgia. Refiro-me ao Cónego Henrique Canas, Pároco de Santa Maria de Belém durante a minha juventude e primeiros anos do Coro de Santa Maria de Belém, ao Cónego José Ferreira, figura incontornável da reforma litúrgica em Portugal e responsável durante décadas pela música na Sé de Lisboa, e, finalmente ao Cónego Ferreira dos Santos, Reitor da Igreja da Lapa, no Porto, e Director do Serviço Nacional de Música Sacra.
Por mera curiosidade, reparo, ao juntá-los, que são três cónegos, mas esse é apenas um detalhe sem qualquer relevância para a mensagem.

O Pe. Canas chegou a Belém depois de ter sido responsável pela Catequese a nível nacional durante largas décadas e também no Patriarcado era uma figura respeitada pelas tarefas desempenhadas e pelo espírito empreendedor. Era um homem muito simples, talvez simples de mais para uma igreja e para uma comunidade tão complexa como a de Belém, mas era um homem genuíno, autêntico. Dizia o que pensava e ia directo ao que queria. Não perdia o seu tempo a ouvir e a promover facções, a protelar decisões ou a promover qualquer tipo de paz podre.
Tinha uma visão verdadeiramente eclesial da Igreja, passe a redundância, cujos mandamentos fundamentais ainda hoje ecoam das suas homilias, práticas e por vezes até incómodas.
Da Liturgia tinha também uma visão directamente bebida do Concílio, que retomara as fontes no que respeita à dimensão celebrante da assembleia, contra uma visão centrada no sacrifício e numa delegação quase total da assembleia na figura mediadora do sacerdote. Mas não se pense que tinha da Liturgia uma ideia demasiado trivial, muito pelo contrário. A Liturgia era uma acção sagrada, solene, que exigia determinadas condições ou requisitos. Ainda me lembro de ter sugerido por mais de uma vez a um salmista que não fosse para o altar em ‘mangas de camisa’ e chegava a emprestar o seu próprio casaco para que aquela lacuna fosse rapidamente superada.
Foi pelas suas mãos que conheci as primeiras revistas de apoio à preparação da liturgia, a que recorria semanalmente - a revista Celebração Litúrgica, cuja assinatura me oferecia, e uns fascículos espanhois e franceses que assinava e partilhava.
Recordo o seu entusiasmo a organizar as peregrinações, a densidade com que preparava e celebrava a Semana Santa e as múltiplas acções de formação em que empreendeu com outros padres, como a Escola de Leigos. Acho que era conhecido pela Universidade Popular Canas.
Do ponto de vista pessoal aprendi com Pe. Canas o desprendimento, a entrega e a dedicação à Igreja. E o coro nasceu nesse espírito e no contexto de uma forte valorização da Liturgia. Referia-se muitas vezes à figura tutelar de Mons. Pereira dos Reis de quem tinha sido aluno, tal como o Cón. José Ferreira.

Não me lembro exactamente de como conheci o Padre Zé Ferreira, como toda a gente o conhece. Lembro-me de um Pontifical na Sé, de um encontro de Liturgia para Jovens na Casa de Retiros na Buraca e lembro-me de, ainda antes da fundação do coro, ter organizado uns encontros paroquiais de Liturgia com o Pe. José Ferreira, quando fui responsável nesse sector no Conselho Pastoral Paroquial. À época estava em Belém um seminariasta dos Olivais, que fez a ponte, e como tinha sido colega do Prior, foi fácil convencê-lo.
O Pe. Zé Ferreira tinha uma forma de falar que me arrebatava completamente. Imensos detalhes históricos, um grande conhecimento da Liturgia, uma grande paixão pela reforma e um sentido de humor imbatível, faziam das suas intervenções momentos únicos, que passavam depressa demais. Depois ouvi-o com o máximo interesse nos encontros nacionais de pastoral litúrgica e no curso de música sacra, em Fátima.
Para além de todo o pitoresco que as suas comunicações sempre contemplavam, o Pe. Zé descrevia a Liturgia antes e depois do Concílio, como quem participou numa revolução e ainda saboreava a Primavera. As suas descrições da Vigília Pascal depois de restaurada eram arrepiantes.
A Páscoa, no sentido mais lato (da dimensão pascal de toda a Liturgia), os Ministérios Litúrgicos e a Assembleia Celebrante foram os seus temas-chave. Dizia: «Está, portanto, condenada a teoria, tantas vezes praticamente aceite, de que aos actos litúrgicos, sendo como são de ordem sacramental e valendo como valem por si mesmos, lhes é indiferente a atitude da comunidade. Não, a liturgia não é algo de alheio ao mundo humano. A liturgia é acção divina, mas realizada entre os homens e a favor dos homens. Por isso, tem de ser entendida, sentida, vivida pelos homens. E estes homens são a comunidade cristã.»
A sua visão da Música Litúrgica decorria desta visão da Liturgia. Ficaram célebres as missas transmitidas pela rádio em gregoriano, que dirigia nos anos 50, mas veio a encontrar na música do Padre Manuel Luís a estética que conciliava a nobre simplicidade das ambiências modais com o canto em vernáculo, acessível, em geral, à assembleia.
O seu contacto directo com o coro resumiu-se a uma vez em que o convidou para a festa de S. Vicente e o dirigiu no Pontifical(ver post 2010-01-22) mas sei que seguia o nosso trabalho com alguma atenção e interesse.

Este quadro não foi superado, mas foi profundamente desenvolvido no contacto com o Cón. Ferreira dos Santos, de que falaremos a seguir.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A última missa

Nos primeiros anos o coro não fazia férias. A partir de meados de Julho entrava ‘em vigor’ uma escala construida a partir das disponibilidades dos coralistas e em cada domingo ficava um pequeno grupo de 4 a 6 pessoas a assegurar o canto na missa solene. Ainda me lembro de uma pessoa que se candidatou ao coro quando, regressada da Alemanha, encontrou num desses modestos domingos de Verão um ‘padrão’ que correspondia aos seus hábitos e às suas expectativas.
Mas depressa este modelo foi substituido por outro mais simples e mais seguro. À semelhança das outras missas dominicais sem coro, celebradas ao longo do ano, também a missa solene foi confiada, no Verão, a um solista, que substituia, nesse tempo o coro. A escala passou a ser de pessoas individuais (2 a 3 pessoas com vozes preparadas) em vez de grupos. A diferença, relativamente às outras missas, estaria sobretudo no reportório, já que na missa solene se mantinha o ordinário gregoriano que seria cantado pelo coro, se estivesse presente, e havia pequenas peças solísticas no lugar onde o coro cantaria a cappella.
Mas porque fazia o coro férias? Para Deus não há férias, diriam os mais devotos. Pois não. E os coralistas saberiam disso, onde quer que estivessem. Mas a verdade é que os coralistas e as suas famílias tinham férias. A mobilidade era intensa no periodo de Verão. E, para além de tudo, às vezes precisamos de não ter algo para avaliar da sua importância.
Em termos de dinâmica de grupo, passou a ser avaliado como oportuna esta pausa. O regresso em Setembro seria identificado como um período de renovação e investimento numa nova etápa.
Por isso passámos a interromper a presença do coro na missa solene sesivelmente entre 15 de Julho e 15 de Setembro, que era o período onde a maioria dos cantores tinha as suas férias laborais / com a família. A primeira quinzena de Julho já era problemática (aliás, a partir do Pentecostes e dos Santos Populares alguma dispersão era inevitável) e o mesmo acontecia com a ultima quinzena de Setembro e 1ª semana de Outubro, para mais com o feriado do 5 de Outubro. Mas faziam-se todos os esforços para que o coro estivesse consistente na ultima missa antes das férias e na primeira da rentrée.
Foi nesse espírito que, a 12 de Julho de 2009, o coro cantou na missa solene, naquela que viria a ser a sua última missa nos Jerónimos. Excepcionalmente, esse ano seria mais longo, devido à digressão a Inglaterra, mas as coisas foram feitas de forma a aliviar a 2ª quinzena de Julho, interrompendo as missas e alguns ensaios, para que, no fim do mês, uma nova aceleração nos levasse a um dos maiores desafios de sempre, que foi essa digressão.
Ninguém poderia imaginar que fosse a nossa última missa. Pessoalmente, estava longe de ser confrontado com o que fui em Setembro e longe de me demitir do coro. Este, estaria longe de que isso alguma vez pudesse acontecer e do contexto insólito em que tudo aconteceu.
Entusiasmados com Inglaterra (embora preocupados com o surto da Gripe A…), cantámos nesta última missa o Exultate Iusti de Viadana e terminámos com o Sicut cervus de Palestrina. Apesar de tudo, foi o nosso cântico de Simeão.


sábado, 10 de julho de 2010

Casamento em Colares


No dia 10 de Julho de 1999 o coro cantou num casamento na Igreja de Nossa Srª da Assunção, Matriz de Colares. Um casamento especial, porque o noivo era um sobrinho de Graça Janz, que veio a ser Presidente da AG do CSMB, porque presidiu o Pe.Luís Manuel Pereira da Silva, Prior da Sé de Lisboa e porque, caso raro, a noiva chegou antes da hora – ainda estavamos nos preparativos quando a porta da igreja se abriu, ficando àa vista um jeep vermelho de onde saiu a noiva mais pontual que jamais vista.

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Televisão

Afinal não foram tão poucas como parecia, as missas cantadas na/para a tevisão, mas em 20 anos a média não chega a uma por ano. A 7 e a 8 de Julho, respectivamente de 2002 e 2001, o coro cantou a Missa do XIV Domingo do Tempo Comum para a RTP2, nos Estúdios RTP 5 de Outubro. Fica o registo.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Missa a 8

Procurámos sempre que houvesse uma articulação temática entre as diversas actividades do coro em cada ano e foi por isso que os workshops de 2008, tanto o de técnica vocal para coros como o de polifonia portuguesa, trabalharam reportório relacionado com a ligação entre Lisboa e Roma, tendo em vista a digressão do coro àquela cidade nesse mesmo ano. O III Workshop com o Prof. Owen Rees dedicou uma boa parte do tempo ao estudo da Missa a 8 vozes de João Rodrigues Esteves, peça que o coro dos participantes apresentou publicamente, na própria missa solene dos Jerónimos, dia 6 de Julho, ao meio dia.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Os nossos discos

Em quase 20 anos de existência, não se pode dizer que o coro tenha tido uma discografia significativa, pois gravámos apenas 3 CD e colaborámos na gravação de um outro da Escola Diocesana de Música Sacra do Patriarcado de Lisboa. Para os padrões de um coro de Igreja em Portugal não é assim tão pouco, mas para aquilo que era a actividade do coro, entre missas e concertos, para aquilo que foi o reportório activo do coro, podíamos ter gravado bastante mais.
Entre outros factores, o mais determinante foi sem dúvida a minha resistência às gravações. Sempre resisti a gravar. Primeiro porque me interessava o momento único e o contexto, com tudo o que tem de especial – o local, a acústica, os executantes, o público –, cujo encantamento se vai perdendo se o podemos recuperar uma e outra vez, sem limite. Depois porque achava sempre que as coisas ainda estavam longe de estar perfeitas. Podiam estar melhores, mais interessantes, mas nunca me agradavam a ponto de as validar como prontas.
A vida do coro era conquistada por entre as suas fragilidades. Numa missa ou num ensaio podiam estar reunidas as condições para executar esta peça ou aquela próximo da tal perfeição, se ela existe, mas nada garantia que essas condições de repetiam, fora da densidade de uma celebração ou da adrenalina de um concerto.
Sempre me parecia que a gravação era artificial, procurava recriar a realidade sem nunca o conseguir, e, para mal dos nossos pecados, permitia repetir essa tentativa vezes sem conta, ampliando a imperfeição e a falha.
Além disto, tinha e tenho as maiores reservas quanto aos meios técnicos de captação e reprodução sonora, e/ou aos meios humanos que as manobram, incapazes, a meu ver, de nos reproduzir o acontecimento real.
E, no fim de contas, tive sempre algum pudor em exibir o nosso trabalho sob este suporte, com todas as limitações que lhe via. A prova é que só foi feito propriamente o lançamento de um dos discos, precisamente a 5 de Julho de 2003, com direito a concerto e porto de honra, na mesma igreja em que tinha sido gravado.
Fazendo o balanço, talvez não tenha procedido bem, pois hoje olho para estes 3 discos, que são tudo o que nos ficou do coro, em matéria de som editado, como uma pálida sombra do que o coro cantou. Há umas gravações mais ou menos informais de concertos mas nada que valha a pena venerar.
O nosso primeiro CD surgiu na sequência de um concerto de Reis, dedicado a Natais populares da tradição europeia. O concerto tinha sido para coro, órgão, quinteto de metais e percursão, mas não havia orçamento para tanto, ao pensar numa gravação. Por isso fizemos o CD com coro e órgão, procurando um órgão de dimensões compatíveis com o orgânico que pretendíamos ‘simular’.
A própria questão do órgão era sempre uma limitação, pois na liturgia tínhamos apenas um órgão electrónico, que foi usado apenas em dois concertos, mas não fazia qualquer sentido gravar sem ser com um órgão real, acústico.
Esse 1º Cd, que tomou o nome do programa do referido concerto, foi gravado pelo Valentim de Carvalho na Sé de Lisboa, pois era ali que estava e está o único grande órgão, de conceito europeu, que Lisboa tem. Mas a Sé revelou-se um problema pois era permeável ao som da rua. Eléctrico a subir, eléctrico a descer, uma mota mais extrovertida e mais ainda os Santos Populares. A ideia era gravar antes das férias, já passado o ano escolar ou pastoral, conforme o gosto, mas gravar em Junho foi uma aventura. Até foi preciso pedir à Junta de Freguesia da Sé que baixasse o som dos arraiais no Campo das Cebolas, que subia até à Sé como sobe o ar quente. Uma aventura.
A simpática equipa de gravação podia ter sido mais diligente, não deixando as máquinas a gravar sozinhas, por exemplo, mas o 2º inferno foi mesmo passar aquelas horas da praxe no estúdio, onde foram muito mais colaborantes, mas onde não há muito a fazer senão ouvir vezes sem conta e escolher o mal menor. Não estava habituado e foi mais um contra a somar aos CD.
Passaram os anos e o 2º CD só saiu em 2003. O modelo do CD incluía órgão mas já só em alternância, pelo que se poderia mais facilmente escolher um órgão ibérico. Ouvira já entretanto falar de José Fortes. Quando me deu os primeiros minutos de teste a ouvir num estúdio improvisado à entrada da igreja, percebi que estava em boas mãos. E o profissionalismo que demonstrou a seguir, num trabalho metódico e exigente, aliado a uma afabilidade irresistível, reconciliou-me um pouco com os discos. Este, foi gravado na Igreja de S. Vicente de Fora, com boa acústica e menos ruídos exteriores (uma mota por outra e as carroças do lixo de um centro de limpeza próximo) e dedicado a temas marianos dos reportórios renascentista e barroco.
O balanço para o 3º teve de aguardar não só o entusiasmo mas também os recursos para o investimento inicial. Gravado no rescaldo da digressão a Roma e dedicado ao mesmo mote desta, demoraria bastante tempo a ser montado, e sairia já depois da Páscoa de 2009. O modelo era semelhante ao do 2º, com órgão alternado, mas com duas peças acompanhada ao órgão. O coro gravou no refeitório do mosteiro dos Jerónimos, que tem uma acústica com muito eco, tal como a da igreja. Aí se gravaram também as peças acompanhadas, com um positivo alugado para o efeito. Quanto às peças de órgão solo foram gravadas na Basílica da Estrela.
Colaboraram nestas edições discográficas o organista António Mota (1º e 2º CD) e o organista Sérgio Silva (3º CD).
O CD da Escola Diocesana tinha objectivos diferentes e uma linha própria. A música era do Pe. Teodoro Dias de Sousa, Director da Escola, que dirigiu o coro, e o órgão foi-me confiado a mim. Tratando-se do órgão Cavaillé-Coll da Igreja de S. Luís dos Franceses, onde o disco foi gravado, foi um gosto dar este modesto contributo.
Após a extinção do coro, os CD por vender foram oferecidos ao Lar das Irmãzinhas dos Pobres, em Campolide, juntamente com o pouco património que nos sobrou, a pensar no bem estar dos que aí vivem e no meritório trabalho desenvolvido por aquela instituição.
A parte mais dura destas gravações foi sempre o trabalho de audição, selecção e montagem. Nesta como em tantas outras tarefas do coro, foi preciosa a companhia metódica e persistente do Miguel, sem a qual teria ainda protelado mais estes registos. Mas ambos fomos compensados pelos animados jantares na casa da família Fortes, na qual estivemos várias vezes, por entre as concentradas horas e desoras no estúdio móvel, sob o céu estrelado do Oeste.

domingo, 4 de julho de 2010

Às moscas


O concerto que o coro deu no dia 4 de Julho de 1998 foi, sem sombra de dúvida, o concerto com menos público de toda a história do CSMB. Provavelmente a publicidade foi escassa, e a magnífica Igreja de S.Sebastião (antiga Igreja do Convento de S. Domingos), em Setúbal, estava 'às moscas’ a poucos minutos do início do concerto. Quatro a seis pessoas no máximo. Alguém do coro ainda me perguntou se cancelariamos mas eu, desde que fui a um concerto de órgão e trompete em que só havia mais um senhor na assistência (2 pessoas no público e 2 a actuar portanto), não me rendi a essa hipótese. E assim demos um concerto de 1 hora a cappella, com pouco mais de um ou dois cortes, para o estimado público que se deslocou aquela colina para nos ouvir.
Um ano depois, no mesmo dia do mês, cantávamos nas missas do XIV Domingo do Tempo Comum para RTP e RTPi nos estúdios da 5 de Outubro. Eu vi a cidade santa, Senhor que viestes e Da vossa santa morada de F.Santos, com O memoriale de G.P.Palestrina reencheram o programa.
A 4 de Julho de 2008, começava o III Workshop Internacional de Polifonia Portuguesa com o Prof. Owen Rees.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Vestes corais

Um traço característico dos agrupamentos musicais (coros, orquestras, grupos de música de câmara) é a forma como se apresentam vestidos nas suas apresentações públicas, pois isso diz muito sobre a forma como encaram a sua actividade.
O Coro de Santa Maria de Belém tinha dois tipos de vestes corais, as que utilizava nos concertos e as que utilizava nas missas e outras celebrações litúrgicas. Só esta simples distinção já ilustra bem que para o coro estas actividades eram bastante diferentes, nos seus objectivos e na sua concretização.


Quanto às vestes de concerto, nada de muito significativo a registar. O coro começou por se apresentar de roupa escura, com as senhoras de preto e os homens de fato escuro.

O fato dos homens evoluiu para smoking (estreia num concerto em Santarém a 4.Out.1998) e o das senhoras, primeiro para um conjunto saia preta até aos pés e blusa cinza/prateada e já no último ano para um conjunto saia preta, com blusa preta e casaco azul dourado. Os modelos nunca são totalmente originais, há sempre uma inspiração e este último foi inspirado pelas roupas do RIAS Kammerchor de Berlim, embora se tenha trocado o bordeaux pelo azul do mar.


Até aqui, nada de muito diferente do que se passa com outros coros em Portugal. A diferença significativa veio com a introdução de vestes corais na liturgia.
Qualquer pessoa habituada a viajar não estranha minimamente que um coro se apresente numa igreja com vestes corais. Em qualquer país da Europa ou nos Estados Unidos, o que seria de estranhar é que um coro se apresentasse a cantar numa missa ou numas vésperas como se os seus membros fossem para o trabalho, para as compras ou para a praia. Qualquer pesquisa na internet comprova isto em poucos minutos. É só procurar o coro de uma catedral ou de uma igreja maior (e nalguns países também as pequenas igrejas do campo) e conhece-se logo uma diversidade de vestes …..
E foi precisamente pela importância da Igreja dos Jerónimos que demos esse passo. Sempre nos recusámos a ver os Jerónimos apenas como um monumento notável onde por acaso se celebram missas. Pelo contrário, e tendo como exemplo as boas práticas dos outros países, sempre ambicionámos para aquela igreja práticas eclesiais dignas daquele espaço único, para que atraísse não apenas pelo edifício mas pela qualidade da sua liturgia e de outras acções a ela ligadas.
Avançámos para as vestes precisamente aquando do restauro da capela mor onde o coro cantava. Durante o seu restauro cantámos na capela norte do transepto, mas constituía uma preocupação constante a forma como as pessoas se apresentavam ao domingo para cantar no coro, umas com roupas mais exuberantes, contrastando com as mais modestas, outras com roupa a menos… Quando a capela mor foi destapada e se apresentou em todo o seu esplendor, percebemos que não deveríamos voltar para lá vestidos desta forma.
Foi aí que se ousou inovar no contexto português, passe a imodéstia. As fontes de inspiração não faltavam, mas não queríamos adoptar os modelos mais tradicionalistas com batina e sobrepeliz. Fomos para um desenho muito próximo do utilizado pelos cantores da Notre Dame de Paris, com linhas sóbrias e optando não pelo azul, mas pelo vermelho, por nos parecer uma cor mais próxima do contexto litúrgico.

A ideia foi proposta ao coro com muita cautela, apresentando-se o modelo em plena capela mor, para um melhor entendimento do objectivo a atingir. Avançou-se também, como não poderia deixar de ser, com conhecimento e total aprovação do Pároco. A adesão de todos foi grande e a receptividade da comunidade foi bastante satisfatória.
Na altura tínhamos também consciência de que esta mudança tinha de ser compatível com o reportório, pois não fazia qualquer sentido colocar o coro num local específico, vesti-lo desta forma e depois cantar cânticos da assembleia.
E este é o ponto. Há quem não goste de fardas, porque lembram excesso de ordem, autoridade, etc. e há quem argumente que dão nas vistas. Mas, pelo contrário, os uniformes, tal como o nome indica, dão unidade à forma (não ao conteúdo) e têm o grande mérito de ilustrar facilmente a tarefa ou o papel de cada um. E quanto a dar nas vistas, os uniformes não permitem que se exibam diferenças de estatuto social, sinais exteriores de riqueza ou pobreza, etc. Só dão nas vistas na 1ª vez. A partir daí fazem-nos associar o significante e o significado – aquilo é o coro.
Mas o coro não faz parte da assembleia? Faz. Então porque é que se veste de uma forma diferente? Porque tem uma função diferente. O coro faz parte da assembleia na medida em que se forma a partir dela para enriquecer a sua participação na acção litúrgica, mas não faz o que faz a assembleia, faz mais, exerce um ministério litúrgico específico, que não é um adorno mas faz parte integrante da acção.
Por vezes referia-me às vestes do coro junto de um liturgista como as nossas vestes ‘para-litúrgicas’ (por oposição às vestes dos ministros ordenados), mas ele corrigia-me «as vossas vestes são efectivamente vestes litúrgicas porque estão associadas ao desempenho do vosso ministério litúrgico».
As vestes vermelhas foram estreadas em 2000, no dia do 10º aniversário do coro e a partir daí a imagem do coro de Belém passou a estar fortemente identificada com este elemento distintivo. Atendendo a que foram pensadas para aquele coro concreto e a sua interacção com os Jerónimos, passámos a usá-las também nos concertos nos Jerónimos, atendendo a que esses concertos tinham uma dinâmica de concerto espiritual, associada a uma quase ressonância da liturgia.
Guardadas na sacristia, sob a protecção de Santa Cecília, as vestes marcavam as fronteiras do entrar e do sair da acção litúrgica, a entrada e a saída do espaço onde a acção decorria, passando o coro a integrar também o cortejo de saída e algumas vezes o de entrada.
Nas actividades no exterior, a bagagem contemplava sempre as vestes de concerto e as vestes litúrgicas, controladas com listas, onde não faltavam indicações sobre a altura e a largura de reforços, solistas, etc.
Em todo este processo teve um papel fundamental a coralista Donna Howard, que desenhava e redesenhava as peças em função das ideias dadas e assumia depois toda uma zelosa vigilância sobre bainhas, ajustes e a limpeza regular da indumentária.