sábado, 20 de fevereiro de 2010

Quaresma


I Domingo da Quaresma: Para quem dirige um coro litúrgico aqui começa um itinerário muito sugestivo. Aqui não, mas semanas antes, na preparação próxima, e até meses antes, na preparação remota, onde o reportório trabalhado nos anos anteriores se vai ampliando e diversificando.
Em matéria de reportório, os arquivos musicais estão cheios, e os portugueses não fogem à regra, de muito e boa música para a liturgia da Quaresma. Quando comparamos com a música escrita para o Tempo Pascal, por exemplo, vemos que há muito mais reportório para a Quaresma. A ordem de importância dos tempos que constituem o Ciclo da Páscoa é: 1º o Tríduo Pascal, 2º o Tempo pascal (os 50 dias até ao Pentecostes) e por fim a Quaresma. Mas esta, que está no início do ciclo, inspirou sempre muitíssimo os compositores de todos os tempos, e as celebrações a que eram chamados a intervir, compondo e executando, sempre foram muitas e variadas, desde a liturgia propriamente dita aos exercícios de piedade, como a Via Sacra.
Ora um desafio de quem tem de escolher reportório e dar o seu contributo para uma prática musical litúrgica (com critérios…) é enorme e interessantíssimo. O Coro de Santa Maria de Belém e o Serviço de Música Sacra no qual a sua actividade na liturgia estava enquadrada, sempre reforçaram os sinais adequados ao tempo de preparação para a Páscoa que constitui a Quaresma:
1. O silêncio, sem o qual não se consegue ouvir música, não se consegue ouvir o nosso interior e não se consegue ouvir Deus. Na Quaresma, usávamos o silêncio, por contraste, onde nos outros tempos costumavamos ter música instrumental, como no ofertório e na saída.
2. A ausência dos sinais exteriores de alegria, como a ausência do canto do glória e do aleluia, de acordo com os livros litúrgicos, a que era contraposta a escolha de reportório que só se fazia neste tempo e a uma atitude geral conforme a este sinal.
3. A ausência de música instrumental, como forma de criar um espaço para o seu resurgimento na Páscoa, deixava este tempo confiado ao órgão, sobretudo na sua função de acompanhamento, diminuindo e adequando as intervenções solísticas.
4. A preferência pelas formas litânicas cantadas, valorizando o tempo de diálogo que é a Quaresma, expressa sobretudo em 3 momentos: o Kyrie, a Oração Universal e o Cordeiro de Deus.
Estes critérios foram bebidos dos documentos da Igreja e sobretudo dos trabalhos de um Encontro Nacional de Liturgia, realizado em 1984, com destaque para a conferência do Pe. Agostinho Pedroso, que os enunciou numa linha de pensamento que sintetizou nestes pontos:
O Místério pascal é o centro da Liturgia; Canto e música são um gesto vivo antes de ser um código; Participam da dimensão sacramental da liturgia; Não se justapõem simplesmente à celebração mas requrem um trabalho aturado sobre as formas, as funções e os actores da celebração; Devem possuir também uma verdade expressiva e uma autenticidade partindo das bases antropológicas concretas e do universo cultural dos fiéis; Os reportórios do passado e do presente não são bens culturais para orgulhosamente mostrar a categoria duma instituição, mas são possibilidades simbólicas para ajudar uma assembleia a participar, a celebrar.
Foi neste espírito que, na sua última Quaresma, o Coro de Santa Maria de Belém deixou duas marcas fortes neste plano simbólico que veio seguindo e consolidando: o canto do salmo responsorial na versão primitiva do canto gregoriano, usando as formas disponíveis no Graduale Simplex, que são de uma beleza e de uma simplicidade inultrapassáveis, e, um segundo elemento, que foi o assinalar cada domingo com uma peça do reportório da polifonia histórica, exactamente escrita para aquele domingo da Quaresma, e por vezes até no próprio momento ritual em que está prevista, como aconteceu por exemplo com o Oculi mei de Morago, usado como introito do III Domingo.

1 comentário:

  1. Poder viver este tempo litúrgico da forma como o viveu o Coro de Santa Maria de Belém foi, para mim, um privilégio. A beleza da música, tanto na liturgia como nos concertos, ajudava-me a sentir e a celebrar, de forma mais intensa, a nossa fé e elevava-me para Deus. Nunca esquecerei o vigor e a força interior com que cantámos Christe, adoremus te (Monteverdi), o ambiente de espiritualidade do concerto em que interpretámos a Via Crucis (Liszt) e a participação na liturgia, de um modo especial no Tríduo Pascal, quando cantávamos “Cristo obedeceu até à morte e morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e Lhe deu um nome acima de todos os nomes” (Ferreira dos Santos). Enfim, são apenas alguns exemplos de tanta coisa boa que há para recordar...
    Aqui fica expressa, mais uma vez, a minha gratidão àqueles que contribuíram para que tudo isto acontecesse.

    Conceição Serejo
    (São)

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