quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Ouve-se melhor


O recomeço de actividades foi sempre uma oportunidade privilegiada para implementar acções de melhoria. A mais significativa de que me lembro foi a decisão de deixar de usar microfones nas missas dos Jerónimos.
É relativamente consensual entre músicos que a amplificação sonora é um recurso a que só devemos recorrer em espaços de grande escala, onde a audição acústica só por si seja insuficiente, quando se pretenda apoiar a audição de instrumentos com pouca projecção em grandes espaços, como os instrumentos de corda dedilhada, em situações ao ar livre ou então para musica eletro acústica.
Na generalidade das grandes igrejas do ‘mundo civilizado’ os coros cantam sem microfones. Embora haja excepções que nunca me convenceram.
Na Notre Dame de Paris, por exemplo, o coro canta no coro (equivalente à nossa capela mor) de lado e ouve-se de facto muito mal sem recurso à amplificação. Mas um factor determinante é, sem dúvida, o permanente ruído de fundo que sempre existe na catedral, pois nem durante as celebrações é feito qualquer esforço no sentido de condicionar / diminuir o nº de turistas, que deambulam, tiram fotografias e falam alto como se estivessem na rua.
Também não me esqueço de uma missa em que estive na Catedral de Nova Iorque (St. Patricks) em que o coro cantava numa varanda sobre a porta de entrada, excessivamente amplificado. Como a catedral tem colunas bastante grossas, instalaram um circuito de televisão que ora vai mostrando, em grande plano, o leitor no ambão, o bispo na presidência ou na mesa, o coro, o organista. O resultado final é o de estar a ver televisão, ou seja, a ver e a ouvir algo que não se passa no mesmo local onde estamos.
Depois há sempre o exemplo da Basílica Vaticana de S. Pedro, que não serve de exemplo, pois tem uma escala tal que cantar lá dentro é semelhante a cantar na rua. Não há retorno de qualquer espécie.
De resto, tudo aponta no sentido contrário. Na generalidade dos países da Europa do Norte, os coros cantam ao natural. Em Inglaterra a tradição manteve os coros a cantar em cadeirais, que, além de estarem estrategicamente localizados, constituem bons pontos emissores pela sua construção em madeira, configuração em degraus (com respectivas caixas de ar que funcionam como caixas de ressonância).
Em Belém tive, pessoalmente falando, sempre duas lutas.
A primeira era a minha discordância quanto ao modo como eram usados os microfones. O som estava sempre muito alto, em especial o microfone da presidência e o do altar. Talvez porque nesses pontos o retorno fosse menor, mas o resultado final era frequentemente violento. E nem os surdos aproveitavam com a situação pois a embrulhada com o eco da igreja era tal que o resultado era inaudível. Quantas vezes me interroguei como poderia a assembleia receber o som do início de um Sanctus quando acabara de ouvir ‘alto e bom som’, como se estivéssemos num comício, a frase do prefácio que antecede esse canto. Uma das razões pelas quais as intervenções do presidente começaram a ser cantadas, foi, nos primeiros séculos, a necessidade de ser audível, num equilíbrio que tem sempre de se encontrar em cada espaço concreto. Uma coisa diferente é vociferar, cantando ou falando, como se as pessoas entendessesm ou valorizassem mais o que dizemos.
Nunca me esqueço de um conselho que o meu antecessor em Belém, o maestro Celso Correia, me deu quando era ainda jovem. «Nunca cantes forte ao microfone, porque as pessoas assim retraem-se e em vez de cantar ficam caladas.» Estas palavras sábias fizeram-me, ainda no início dos anos 90, terminar com a figura do regente de assembleia, que é, de facto, uma figura acessória e supérflua. Uma coisa é ter um sinal de que é a nossa vez de cantar, outra bem diferente é ter alguém a cortar vento à nossa frente, que muitas pessoas identificam com um factor de distracção e um constrangimento a uma participação orante na liturgia. Mas o conselho esteve sempre presente, quando lidava com o canto individual ao microfone e foi determinante quando dispensei os microfones na intervenção do coro.
A outra luta foi a do turismo. Nunca compreendi porque é que uma igreja dos Jerónimos não fazia daquele que era um dos seus maiores handicaps, o turismo nas horas das celebrações, uma das suas maiores oportunidades, enquadrando as pessoas, convidando os que quisessem participar na liturgia a participar e os restantes a visitar a igreja noutra altura. Esta acção teria naturalmente de ser apoiada com pessoas encarregadas de tarefas concretas na abertura e fecho da igreja, no acolhimento e na manutenção do silêncio. Mas o que tive durante os 20 anos de coro foram celebrações onde o ruído de fundo esteve sempre presente, onde em plena consagração havia flashes fotográficos e pessoas a circular. E como era difícil encher de som um espaço daquele tamanho, produzido por um coro de não cantores, com aquele ruído todo.
Houve o dia em que decidi que o barulho dos turistas não era da minha conta e que não seria à conta de uma amplificação sonora que o coro se haveria de ouvir melhor. E arrisquei. Arrisquei com receio, num momento em que o coro já cantava reportório com envergadura, desafiando-o também para potenciar a sua postura vocal, no sentido de uma audibilidade que não passasse tanto pelo esforço mas pela atitude.
Penso que valeu a pena. Acima de tudo passei, como director do coro, a ser eu que controlava a situação. Antes, sempre que fazíamos um forte a aparelhagem ‘decidia’ que estava alto de mais e reduzia o volume, e quando fazíamos um piano, entendia a tecnologia que não se ouvia e por si só ampliava. Não havia crescendo ou diminuendo que pudesse controlar. Agora sim, sabia que não iriam ouvir muito mas o que ouvissem seria mais verdadeiro e mais autêntico (o que, só por si, me pareceu adequado para as coisas de Deus). O resultado foi magistralmente classificado por um dos empregados da igreja encarregados do som, que, na sua simplicidade concluiu: «não se ouve mais, mas ouve-se melhor».

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