segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Um órgão para os Jerónimos?


Um órgão de tubos para o Mosteiro dos Jerónimos, foi o tema da campanha lançada em 1996 pela Paróquia de Santa Maria de Belém, sob o forte impulso do seu Serviço de Música Sacra.
Este serviço fora organizado em 1989, imprimindo uma lógica à dinamização musical da liturgia que procurava conciliar o melhor da reforma litúrgica e da pastoral saída do Concílio Vaticano II com a especificidade da igreja-monumento e tudo o que representa a Igreja dos Jerónimos.
Um passo decisivo foi a fundação do Coro de Santa Maria de Belém, em 1990, após a qual emergia como um enorme constrangimento a falta de um órgão de tubos na Igreja dos Jerónimos.
Havia registos de órgãos entretanto desmantelados que teriam estado instalados de cada lado do cadeiral, no coro alto, e ainda encontrámos algumas fotos no arquivo fotográfico municipal. E tanto o Pe. Manuel Valença, nos seus livros sobre os órgãos e a prática organística, como o ex-padre Felicidade Alves (também ex-pároco de Santa Maria de Belém), nos seus livros sobre a Igreja dos Jerónimos, falavam destes instrumentos de grandes dimensões que, à semelhança dos que também estavam instalados no Mosteiro da Batalha e no de Alcobaça, teriam sido desmantelados nos restauros que, um pouco por toda a parte, marcaram a transição do Séc. XIX para o XX, e que procuraram, sucintamente, devolver aos monumentos a sua traça original. Resultado, tal como aconteceu a muitas talhas e estuques dos séc. XVIII e XIX, lá foram os órgãos sabe Deus parar onde.
Estas parcas informações, por um lado, e a reforma litúrgica do séc. XX, desaconselhavam uma solução revivalista que reconstituísse os órgãos barrocos desmantelados. Seria um erro equivalente ao dos restauros que os fizeram desaparecer e perpetuaria a lógica de que só o que é antigo é que conta, é que é história.
A lógica seguida, pelo contrário, partiu da premissa de que é preciso fazer história, no tempo em que nos encontramos, honrando o que herdámos do passado e deixando às gerações futuras senão algo pelo que se possam orgulhar, pelo menos algo que não nos envergonhe.
Ainda me lembro de ter ido dizer isso ao Conselho Pastoral Paroquial, com um caderno que preparámos para informar e entusiasmar os seus membros.
Estávamos profundamente animados, no serviço de música e no coro, pela instalação, recente ou em curso, de novos instrumentos nalgumas igrejas do país, em especial no Porto (Sé, Igreja da Lapa, Igreja Senhora da Conceição, Igreja de Cedofeita), mas também em Leiria (Sé) e Beja (Sé), e tínhamos depois as referências dos órgãos de Paris, de Londres, da Alemanha, da Holanda, dos Estados Unidos, perante as quais me parecia uma profunda anomalia que uma igreja com a importância da dos Jerónimos não tivesse um órgão de tubos.
O mesmo deveria parecer aos milhares de turistas que a visitavam, em especial junto às horas das missas, a muitos dos quais contei vezes sem conta esta história quando me perguntavam onde estava localizado o órgão.
Pessoalmente, estive por dentro da iniciativa inicial, e em muitas reuniões desde as internas às reuniões com o Presidente da República, com o Presidente do IPAAR, com o Ministério da Cultura etc., até há pouco mais de 2 anos, mas a minha perspectiva deste assunto é, naturalmente, apenas uma entre outras possíveis, marcada talvez como nenhuma outra pela ideia subjacente ao Serviço de Música Sacra e à particular articulação com o trabalho do Coro de Santa Maria de Belém.
Constituíram-se duas comissões paroquiais, uma técnica e outra artística, organizou-se uma viagem de estudo à Alemanha, Suíça e Holanda, na qual tive o privilégio de participar, contactando com instrumentos e com oficinas de organaria, lançou-se um pedido de apresentação de propostas a um conjunto de organeiros de topo, tudo com a meta de ter o órgão no ano 2000, em que se assinalava o Grande Jubileu do Ano 2000. Se não o órgão pelo menos a assinatura do contrato.
Mas nem órgão nem contrato. A comunicação com o IPPAR não resultava, limitando-se a paróquia a informar o que ia fazendo e o IPPAR a não designar ninguém para acompanhar o processo com poder de decisão, ou de reunir condições para a tomada de decisões.
Nalguns contactos ao mais alto nível cheguei a ficar convencido de que tudo se resolveria se a Igreja se limitasse a celebrar missas (com órgãos electrónicos, claro) e o estado a restaurar órgãos e a promover concertos.
Muitas questões equívocas atravessaram estes tempos difíceis, em que não se encontrava o consenso suficiente, numa matéria já de si complexa e por isso potencialmente pouco consensual. Talvez a mais relevante tenha sido a do órgão ibérico. Como se sabe, tivemos no passado uma tradição organistica com características próprias de que nos devemos orgulhar, pelo que construir um órgão decalcado dos modelos de outras tradições organísticas seria completamente redutor. Mas também é verdade que a nossa tradição se perdeu nas vicissitudes do Séc. XIX e chegamos no séc. XX ao grau zero do órgão em Portugal. A inversão só se deu pela ligação com o exterior, através de professores estrangeiros que vieram para Portugal e de bolseiros portugueses que estudaram fora de portas.
Não fazia e não faz sentido, por isso, continuar a venerar a ‘alma’ ou o ‘espírito do órgão ibérico’ quando está em questão construir um órgão para a 2ª maior igreja do país, para usos que não eram os do séc. XVIII. É preciso não fazer tábua rasa do passado, mas também não ficar amarrado a esse passado, o que na prática não é fácil nem linear.
Já com projectos na mão e com escolhas possíveis, o assunto não avançava, num contexto institucional em que nem a Igreja nem o Estado pareciam estar à altura de um trabalho suficientemente informado para uma decisão convergente na determinação dos papéis distintos de cada um.
Foi então que surgiu a ideia de um órgão de coro. Não surgiu do nada, pois já se falava desde o início do processo de que, fosse qual fosse a localização do grande órgão (outra questão sempre muito pouco consensual) o coro precisaria de ter um instrumento de apoio junto de si, e havia pelo menos duas hipóteses: ou um positivo ou um órgão de coro, i.e., um órgão com uma dimensão entre os 12 e os 20 registos (ou mais, atendendo à escala do edifício).
Pensando na situação da maior parte das igrejas parisienses, onde há um grande órgão para as intervenções solísticas e acompanhamento da assembleia e um órgão de coro para acompanhamento do coro, de solistas e da própria assembleia em celebrações com menos participantes, a solução de um órgão de coro pareceu ser a forma mais segura de sair deste impasse.
Lembro-me de ter falado com um responsável de um serviço do Estado que me assegurou que esta seria uma questão pacífica e que a paróquia podia avançar. Mas, uma vez mais, a questão não foi pacífica.
A localização desejada para o grande órgão era a parede Norte, naquela zona entre os antigos confessionários e a esquina para o cruzeiro. Tinha a enorme vantagem, sublinhada por todos os organeiros que visitaram a igreja, de ficar mais próxima da acção litúrgica e de todos os seus intervenientes, além de que, do ponto de vista acústico, oferecia melhores garantias de distribuição e retorno do som. Mas tinha contra si a posição daqueles que defendiam a preservação da parece do risco, exactamente o local onde se queria pôr o órgão e onde estão uns riscos importantes para a história do desenho e construção da igreja. Mas a localização do órgão não teria forçosamente que ocultar os tais riscos que, aliás, apesar de tão importantes, nem sequer estão identificados ou iluminados.
Havia depois a hipótese 2, que era o coro alto, onde só havia problemas: desde logo a localização do cadeiral, que não se podia ‘beliscar’, mas que obrigaria à opção por um dos lados ou pelos dois com soluções menos mecânicas, havia depois o problema do peso e da estrutura da varanda, como sobretudo o problema da distância e do retorno, para o qual as paredes mais próximas ficavam a cerca de 100 metros!!! Isto dava um grande folhetim romanesco, pois o Estado chegou a encarregar a igreja de fazer uma prova de esforço à varanda, tendo depois mandado cancelar a experiencia quando já estavam comprados os sacos de areia, etc. Portugal no seu melhor.
Posto isto, não parecia ser difícil de definir que, o lugar para o órgão de coro seria aquele que fosse mais próximo do coro, ou seja, na capela mor. A 1ª pessoa que apontou de forma determinada esta localização foi D. Manuel Clemente, numa vez que foi aos Jerónimos celebrar a missa do aniversário do coro e a autoridade académica e eclesial da sua pessoa deram-nos novo alento.
Mas havia um problema, é que a capela mor praticamente não tinha/tem paredes vazias e é bastante estreita quando comparada com o resto da igreja.
Foi então que, inspirados pela localização recente de um órgão de coro na Capela Sistina, que obedecia a requisitos de mudança rápida de local em caso de necessidade, fomos ao encontro do seu organeiro, o suíço Mathis.
Se era possível ter colocado um órgão num local tão especial como a Capela Sistina, também não haveria de ser impossível instalar nos Jerónimos ao menos um órgão de coro.
O organeiro veio aos Jerónimos, analisou o local e fez uma proposta para o início da capela mor: um órgão de 18 registos, com uma caixa inspirada no ambiente decorativo da capela mor e dos seu túmulos. Tinha portanto as dimensões adequadas para fazer a ligação entre o coro, a assembleia e os outros ministros, podendo naquela localização suportar o mais possível o canto de todos. E tinha também a preocupação de interferir o menos possível com as perspectivas da capela mor vista de frente, uma vez que a caixa tinha pouca profundidade e o órgão se estruturava mais em altura. Chegou a contemplar duas hipótese alternativas para a consola, por causa das perspectivas e da funcionalidade.

Mas a história não ficaria por aqui, pois o IGESPAR (ex-IPPAR) excluiu a hipótese de localização do órgão de coro na capela mor e apontou com alternativa a zona do cruzeiro. Pasme-se: um órgão de coro na zona mais larga e mais alta da igreja, uma zona que sempre excluímos para a localização do coro precisamente por isso. Uma coisa é cantar um motete a cappella com a igreja quase vazia, como fazíamos no cruzeiro no final da celebração de 5ª Feira Santa, outra coisa seria cantar missas inteiras, com a igreja cheia de pessoas (incluindo turistas a falar ao fundo) numa zona tão desguarnecida, e onde estava o enorme estrado de alcatifa com o altar, e que era um autêntico buraco acústico.
Se o local não servia para o coro também não deveria servir para o órgão, mas, se era o único local em que autorizavam a localização do órgão, paciência. Mais valia ter um órgão de tubos mal localizado que não ter nenhum e continuar a fazer a música que se fazia com um órgão electrónico. Mas o mais irónico de tudo era no fundo ter um órgão de coro que não poderia servir como tal, ou seja, que estaria tão longe do coro que dificilmente o poderia acompanhar, porque o coro dificilmente o ouviria e vice-versa naquela disposição.
O que a paróquia então fez foi pedir ao organeiro que reconfigurasse o projecto da capela mor para o cruzeiro, ou seja, que dispusesse sensivelmente o mesmo número de registos numa caixa mais próxima de um cubo, respondendo também às sugestões de um interlocutor do IGESPAR que assim como surgiu também desapareceu nesta etapa do processo. Poderia ter encomendado um órgão de maiores dimensões pois, naquele local, o órgão constituiria sempre um obstáculo visual e, pelo menos poderia ser mais completo na sua intervenção. Poderia por exemplo acompanhar o coro, com recurso a um circuito interno de televisão, como fazem nas catedrais inglesas em que o órgão está ao centro sobre o jubeu, e o coro no cadeiral. Mas não houve informação e/ou vontade e/ou contexto para tal.
Qualquer pessoa poderia antever que, ao chegar um novo elemento àquela zona da igreja, com as características que se configuravam, a tendência seria começar a reorganizar o espaço, a ajeitar as peças, não sendo certo que o resultado final fosse satisfatório e/ou consensual e/ou funcional.
E foi desta forma que se chegou ao ponto a que já pouco se esperava chegar, assinar finalmente um contrato para a instalação de um órgão nos Jerónimos. Eis como o inesperado acontece e com que lógica se constroem grandes empreendimentos. Investindo todo o dinheiro que a comunidade ofereceu para a construção de um grande órgão de tubos (e não só), foi comprado o órgão que lá está hoje, na minha perspectiva um excelente instrumento musical mas uma peça arquitectónica que agride o local e que, apesar do seu carácter móvel, feriu de morte o equilíbrio que havia, ao nível do espaço e ao nível dos intervenientes.
Já pouco acompanhei o processo na fase final porque pedi que me dispensassem quando chegaram a acordo para esta solução, há pouco mais de dois anos. Do ponto de vista organológico o meu contributo era insignificante e perfeitamente colmatado pelo de outras pessoas envolvidas, e a solução para o problema foi posta em tais termos que também não quis ficar com o ónus de não se ter órgão nenhum.
Literalmente afastei-me quando o processo deixou de me fazer sentido, e expressei honestamente que ajudava mais estando afastado do que por perto, pois o que faltava era adjudicar o contrato, construir e instalar o órgão.
Não querendo ser juiz em causa própria creio que este afastamento foi um acto de responsabilidade, como foi a opção musical para a qual orientei o coro no ano seguinte, que tinha por base uma dinâmica mais de alternância do que de acompanhamento. Sem querer estava até a voltar à prática organistica ibérica onde o órgão sempre teve mais um papel dialogante (stile alternatum) que acompanhante.
Em 2008/2009 experimentámos uma prática musical litúrgica onde se passou a ouvir mais o coro a cappella e se remeteu o órgão mais para um papel solístico, sem alterar o esquema das missas só com cantor e órgão. Isto foi feito, uma vez mais na rentrée, sobre a qual temos vindo a falar como um período propício a acções de melhoria, e, também, uma vez mais, com a concordância do Pároco, com base num documento que preparei no Verão de 2008. O recurso desta proposta era, no caso do coro, cantar mais gregoriano e polifonia clássica, nada mais nada menos que pôr em prática as orientações do concílio que permanecem no caso português quase letra morta.
A inauguração que teve lugar a 30 de Setembro de 2009 ilustrou de forma exemplar o sentido desta ‘nova’ prática, pois consistiu num concerto em que o coro cantou o próprio e excertos do ordinário, e em que o órgão assumiu as grandes introduções, os interludios, os momentos de meditação e alguns versos em alternância. A experiência tinha resultado e poderia continuar. O coro adaptara-se a tempo e horas para a mudança. Mas nem todos se preparam com tanta prudência.
Aparentemente estavam criadas as condições para que a organização musical e litúrgica se qualificasse, mesmo continuando sem vislumbrar o grande órgão. Acontece que me fora comunicado pelo Pároco durante o mês de Setembro que o coro tinha de mudar de sítio, não necessariamente para o pé do órgão mas para um sítio não definido, ou seja, o coro tinha de adaptar-se, porque o estrado de alcatifa iria ser retirado e a capela mor voltaria a ser a zona do altar propriamente dita.
Perante a minha recusa em acatar esta decisão sem direito a recurso comuniquei que iria sair e que o coro deveria continuar o seu trajecto. Efectivamente nada de substancial aconteceu no sentido de mudar o curso das coisas e foi neste ambiente que preparei o coro para a inauguração do órgão.

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