terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Pequenos Cantores de Belém


A Igreja celebra a 28 de Dezembro a Festa dos Santos Inocentes, as crianças do sexo masculino que foram assassinadas na cidade de Belém, cumprindo a ordem do Rei Herodes que não entendeu o sentido da profecia que dizia que o Rei dos Judeus iria nascer naquela cidade e seria o rei de todos os povos.
Esta festa é assinalada não só no contexto litúrgico, mas muito em volta dele, com manifestações populares em torno da inocência e que nalguns casos se assemelham ao dia das mentiras (1 de Abril).
Uma das tradições mais peculiares está ligada aos coros de pequenos cantores, nos países onde há tradição de coros de pequenos cantores, e consiste em permitir que as crianças destes coros se disfarcem de cónegos e de bispos e assumam por um dia a responsabilidade pelas catedrais. É uma brincadeira, bem entendido, e só é possível em sociedades onde o canto, a liturgia e o papel das crianças na vida cultual é levado muito a sério. Caso contrário, não passaria de uma tradição quase incompreensível.
Vem isto a propósito da experiência dos pequenos Cantores de Belém, que o Coro de Santa Maria de Belém promoveu, em parte, durante vários anos. Em parte, porque a experiência arrancou primeiro no âmbito do Serviço de Música Sacra da Paróquia de Santa Maria de Belém e só numa 2ª edição foi dinamizada pelo coro, enquanto associação.
Na base desta experiência esteve o contacto com coros de pequenos cantores no estrangeiro (nomeadamente em Londres e em Regensburg) e também em Portugal. Esteve também o aprofundamento daquilo que foi o movimento dos ‘pueri cantores’, no âmbito da reforma litúrgica do Séc. XX, e a realização do 1º Encontro Nacional de Pequenos Cantores, em Fátima (1992) e a criação da Federação Nacional dos Pueri Cantores, amplamente relatados na Voz Portucalense e no Boletim de Música Sacra do Serviço Diocesano de Música Litúrgica do Porto.
A formação musical das crianças é uma actividade milenar na Igreja. Do Séc. IV ao Séc X., pelo menos o canto das crianças na liturgia era frequente, havendo relatos impressionantes do Séc. IX onde coros de crianças se associavam aos dos monges para assegurar o canto ininterrupto do Ofício 24 horas por dia! Esta tradição manteve-se embora sujeita a adaptações quando surgiu a polifonia, enfraqueceu com o aparecimento da Ópera e sua influência na música da Igreja e sofreu um duro golpe com o desaparecimento das escolas das catedrais e das abadias no Séc. XIX. A reforma litúrgica, que procurou regressar ‘às fontes’, não podia pois deixar de considerar a reabilitação desta tradição.
S. Pio X teve uma importância fundamental neste movimento. Em 1907 alguns jovens estudantes, inspirados no seu Motu Proprio, prepararam-se cuidadosa e assiduamente para a execução do canto litúrgico, que cantaram de cidade em cidade, de igreja em igreja. Pio XI deu instruções mais claras: «Quanto às escolas de crianças, sejam fundadas não só nas igrejas maiores ou catedrais, mas também nas igrejas menores ou paroquiais: e as crianças sejam educadas no belo canto pelos mestres capela, a fim de que as suas vozes, segundo o antigo costume da Igreja, se juntem aos coros dos homens, especialmente na polifonia sagrada, sendo-lhes confiado, como sempre foi, a parte de soprano, ou de canto.»
Em Paris foi fundada a Manecanterie des Petits Chanteurs à la Croix de bois, que teve como grande animador Mons. Maillet (1930) o qual escolheu como divisa «Amanhã todas as crianças do mundo cantarão a Paz de Deus». Ainda hoje é possível encontrar fotografias destes coros, em que as crianças assumiam como sua insígnia, sobre a alva branca, a cruz de madeira. O movimento alastrou-se a toda a cidade de Paris, a toda a França e a uma boa parte da Europa, sob o patrocínio dos pontífices, que presidiram a várias missas de congressos internacionais de pequenos cantores, em Roma.
O Concílio Vaticano II, que teve a sua preparação remota desde o início do Séc XX, foi fortemente impulsionado pelos movimentos litúrgico e musical que tiveram uma grande vitalidade apesar das guerras, mas não veio trazer nada de novo, uma vez que apenas reforçou aquilo que os papas tinham recomendado nas referências explicitas às Scholae Cantorum na Constituição sobre a Sagrada Liturgia e na Instrução sobre Música Sacra.
O panorama é hoje francamente pior. Não há praticamente coros de pequenos cantores em Paris (ainda no Verão procurei em vão saber dos Petits Chateurs de Saint Germain des Près que recebera nos Jerónimos no início da década de 90 e já não existem). A Alemanha mantém alguns dos seus melhores coros de pequenos cantores como os Regensburger Domspazen (que também recebemos nos Jerónimos no ano 2000) e até aqui ao lado em Espanha se mantêm experiências como a Escolania de Montserrate. Mas a grande excepção é sem dúvida Inglaterra, onde o elevado nível da música nas igrejas foi e continua a ser favorável, apesar das dificuldades dos tempos, a este tipo de coros. As catedrais têm como modelo de coro fundamentelmente o modelo dos pequenos cantores, tanto no contexto anglicano como no católico, onde o caso mais paradigmático é o Coro da Catedral de Westminster, que foi fundado e iniciou a sua actividade mesmo antes de concluído o edifício da catedral, na perspectiva de uma oferta de grande qualidade, que ainda hoje está patente (deve ser a única igreja no mundo onde diariamente é cantada uma missa por um coro, com reportório de grande fôlego).
A experiência dos Pequenos Cantores de Belém começou com o convite a uma especialista no método Ward, a Dra. Idalete Giga, que arrancou com um grupo de mais de 40 crianças no ano lectivo de 1993/94. O entusiasmo foi enorme, e o grupo mostrou facilidade na abordagem ao canto gregoriano e ao canto popular religioso. A sua integração na liturgia parecia, no entanto, um processo demorado e o orçamento do projecto era excessivo para a Paróquia.
No ano seguinte o modelo tomou outro figurino, com um tempo de formação musical por semana e um tempo de coro propriamente dito, que foram confiados, respectivamente, à Prof. Maria Luísa Lopes e à Irmã Maria de Jesus. Este modelo, que foi inspirado numa carta que, na altura, me foi enviada de Regensburg pelo Dr. Paulo Antunes e em que esboçava o esquema mínimo de um projecto musical com crianças para a liturgia, manteve-se até ao ano 2000, com frutos ao nível da liturgia, algumas apresentações para as familias no salão paroquial, com o envolvimento de outras professoras como Catarina Saraiva, Maria Gabriela Alves da Silva e Irmã Fernanda Tavares. No entanto, a dificuldade de renovação do grupo (que num coro de crianças ainda é mais premente do que num coro adulto) aconselhou a uma pausa.
O projecto foi retomado no ano 2005 pelo Coro de Santa Maria de Belém, que convidou para o dinamizar a Prof. Teresa Lancastre. Com dois ensaios semanais o grupo atingiu um bom nível musical e associou-se a outros coros para participar em espectáculos no CCB, na Igreja de S. Roque e até na Presidência da República. No entanto, o canto na liturgia revelou-se, uma vez mais, uma dificuldade, pois o máximo que se conseguiu foi uma participação mensal no ano 2008/09. Foi uma dificuldade trabalhar reportório para a liturgia (fizeram-se peças de Fauré, Rheinberger e algum canto gregoriano), foi uma dificuldade conseguir o compromisso dos pais em trazer as crianças nos dias agendados para a participação na missa e foi uma dificuldade conseguir que o projecto se auto-sustentasse. Na prática a mensalidade das crianças não chegava para pagar à professora e o coro tinha de recorrer aos seus parcos recursos para cobrir a diferença. Por tudo isto decidiu suspender o projecto no final do ano lectivo de 2008/09, longe de imaginar os acontecimentos que iriam precipitar o fim próprio do coro.
Todo este processo permitiu confirmar que:
• Os coros de pequenos cantores só têm futuro em contextos onde a música e a liturgia, por um lado, e, por outro, a participação das crianças na vida cultual da comunidade cristã são uma preocupação, uma realidade assumida com sentido de responsabilidade e honestidade, o que implica tempo, método e convergência de vontades. O resto é puro entretenimento e fogo de vista.
• Os coros de pequenos cantores devem ser confiados a quem reúna elevados conhecimentos musicais, pedagógicos e litúrgicos. É muito difícil encontrar pessoas que reúnam estes 3 atributos.
• O segredo dos pequenos cantores de sucesso é o ensino integrado. Em Inglaterra e noutros países os mais afamados coros de pequenos cantores vivem, estudam, brincam e cantam nas catedrais ou nos colégios, o seu dia a dia é altamente diversificado mas não dispersam a sua atenção entre actividades avulso, entre filas de trânsito ou em transportes. Há videos na internet que comprovam como se pode ter uma vida ‘normal’ nestes contextos, ser feliz e ter o privilégio de uma experiência destas. Os grandes músicos começaram pelos coros de pequenos cantores.

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