sexta-feira, 16 de julho de 2010

Ferreira dos Santos

O Coro trabalhou apenas uma vez com o Cón. Ferreira dos Santos, juntamente com outros coros de Lisboa, na apresentação de uma cantata popular em honra de Mons. Alves Brás, na FIL da Junqueira. Foi uma pena que este tenha sido o único contacto directo, porque não foi de modo nenhum ilustrativo do que é a sua pessoa e da real influência que teve no coro.
Conheci o Cón. Ferreira dos Santos há sensivelmente 20 anos. Foi em Fátima, num dos primeiros encontros nacionais de pastoral litúrgica a que fui. Não me lembro exactamente se no primeiro ou no segundo, pois a ideia que tenho é que da 1ª vez ele estava doente e falou sentado, numa postura muito recolhida, mas da 2ª vez estava já com todo o seu vigor, revelando-se uma pessoa extrovertida e muito determinada. Talvez nem tenha simpatizado à partida com essa forma de estar, mas foi sol de pouca dura, pois rapidamente passei à admiração, que se mantém até hoje, não obstante a controvérsia que, como é próprio das grandes figuras, gera sempre à sua volta.
A aproximação fez-se num jantar em Fátima, mas depois fui conhecer o Cónego no seu ambiente natural, o Porto. Fui a uma missa nova na Igreja da Lapa, onde é reitor, e deu para perceber que estava numa igreja diferente, onde é patente a ordem, a organização, a limpeza e onde todos os domingos a igreja se enche de hora a hora para as várias missas.
Voltei pouco depois, com mais tempo. Pude ver a diversidade das missas, onde havia um coro polifónico na missa solene, um coro gregoriano na das 11h, um coro das empregadas do hospital na de domingo à tarde, um coro de crianças e flautas na de sábado… uma sinfonia. Conheci minimamente as instalações, onde havia um órgão de tubos para estudo.
O cónego levou-me à Sé, onde pude ver o magnifico órgão instalado em 1985 sob a porta da entrada, mas também os dois órgãos históricos da capela-mor. Uma Sé com 3 órgãos a funcionar, como poderíamos ter em Lisboa, se não tivessem feito o que fizeram nos anos 60. Pelos corredores da Sé havia órgãos electrónicos, usados nas aulas da escola diocesana. Ali mesmo ao lado, um pequeno prédio encostado à Sé era a sede do Coro da Sé, onde noutra visita assisti a um ensaio do Requiem de Bontempo (o actual maestro Cesário Costa era o acompanhador regular dos ensaios). Enfim, tudo aquilo me falava de um mundo até então desconhecido.
Mas o mais relevante era mesmo o trajecto do cónego. Depois dos estudos de música em Portugal foi para Munique estudar Música Sacra como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Já era padre nessa altura e essa oportunidade abriu-lhe completamente os horizontes.
Quando voltou, ‘negociou’ com o Bispo do Porto, na altura ainda a mítica figura de D. António Ferreira Gomes um conjunto de iniciativas que entendia ser necessário empreender, para renovar a música litúrgica na diocese. A saber:
• Criar um coro de referência para a Sé, um coro polifónico formado de pessoas preparadas de toda a diocese, para cantar nas celebrações do bispo e dar a conhecer, em concertos na Sé e um pouco por toda a diocese, o património coral sacro;
• Organizar encontros de preparação abertos aos membros dos coros paroquiais em vários pontos da diocese;
• Criar um Boletim de Música Litúrgica, para dar a conhecer novo reportório;
• Dotar a Sé de um grande Órgão de Tubos;
• Criar uma escola Diocesana de Música Sacra;
• Promover a reforma da música nos seminários diocesanos.

Tudo isto era já uma realidade consolidada quando o conheci, e por isso passei a seguir atentamente o que se fazia no Porto. Assinei a Voz Portucalense, por onde me guiei sempre para a preparação dos tempos litúrgicos e das celebrações, assinei o Boletim de Música Sacra, do qual o coro cantou, seguramente mais de metade do reportório de 150 números, e passei a ir ao Porto com regularidade, para me refrescar.
Sei que em Lisboa fiquei conotado com esta ligação, mas a alternativa era o deserto ou a ficção.
Continuei também a acompanhar o cónego nos encontros nacionais de liturgia e, mais de perto, nos cursos de música sacra de Fátima. Por iniciativa sua, fui convidado por duas vezes a falar nesses encontros, e o coro foi convidado para cantar na Sé de Lisboa no âmbito de um congresso internacional sobre órgãos, e também para dar um concerto no encontro da pastoral litúrgica de 2008, que não pode aceitar por ser a seguir à digressão a Roma e a gravação de um CD.
Fui várias vezes aos concertos do aniversário do órgão da Sé do Porto e assisti à inauguração do grande órgão da Igreja da Lapa, hoje o maior órgão do país. Não assisti propriamente ao dia da inauguração, que foi notícia, com a confraria do vinho do porto a levar pipas de vinho em carros de bois para a Lapa e a servirem vinho a partir do tubo maior do órgão, mas estive no ciclo de concertos inaugural e voltei várias vezes para ouvir esse órgão e outros que entretanto foram sendo instalados noutras igrejas do Porto, num efeito de contágio que se traduziu numa renovação a todos os títulos excepcional no país.
À medida em que viajava pelo estrangeiro, parecia-me sempre que a igreja da Lapa não ficava em Portugal, mas algures na Suíça, na Áustria, na Alemanha ou em Inglaterra, e isto não apenas pelo esmero com que a igreja se apresenta mas pela sua organização, pela sua vida cultual e cultural, constituindo-se num pólo de atracão eclesial em toda a zona do Porto.
No início dos anos 90, o Cónego foi responsável pelo envio de vários jovens a estudar na Alemanha, onde fizeram os seus estudos superiores em Órgão, Direcção Coral e Composição. Alguns foram meus colegas e/ou professores nos cursos de Fátima. Mais tarde foi responsável pela criação dos primeiros estudos superiores de Música Sacra em Portugal, ao criar a Escola das Artes, na Universidade Católica, com estudos superiores em Música, Restauro, Comunicação e Imagem, ilustrando uma visão estratégica e uma amplitude de pensamento infelizmente pouco comum.
Para além disto havia os grandes eventos: o cónego compôs várias cantatas populares para grandes efectivos corais e instrumentais, que apresentou em Lisboa (nos Jerónimos, na Igreja do Coração de Jesus, na FIL), em Fátima e, naturalmente, no Porto.
O que é que isto tem a ver com a história do coro de Belém? Tudo O coro cantou imenso reportório litúrgico de Ferreira dos Santos, mais do que de qualquer outro compositor; aderiu ao figurino dos cânticos em tríptico, com antífona para grande coro, refrão e estrofes para pequeno coro, um esquema que cultivou e promoveu e com o qual o coro cobriu grande parte do ano litúrgico; teve acesso a reportório de outros compositores publicados no Boletim, com destaque para Fernando Valente e Fernando Lapa (com este último teve mesmo, podemos dizê-lo, a máxima identificação no que respeita a música coral litúrgica em português); inspirou-se na Lapa (como noutras igrejas do estrangeiro) para a prática musical litúrgica que promoveu em Belém.
Esta nota tem, como se percebe, uma acentuada marca pessoal. Sem conhecer o Cón. Ferreira dos Santos eu talvez não tivesse sonhado o que sonhei, e tentado tornar alguns sonhos realidade. Sem o seu testemunho talvez nunca tivesse acreditado que a música sacra tem um papel determinante e que é dever da Igreja em primeiro lugar, e não do Estado ou de qualquer outra entidade, reconhecê-lo, promovê-lo e estimá-lo (isto é válido para o património físico, como os órgãos, e para aquele mais imaterial que é a música quando se faz e o património humano que são as pessoas que fazem a música!). De facto, durante este tempo todo acreditei na Igreja com letra grande, acima de qualquer paroquialidade, e no extraordinário potencial evangelizador da Música.
Se Portugal tivesse tido, neste tempo, pelo menos 10 pessoas como esta na música sacra, a realidade seria bem diferente e o futuro bem mais encorajador.

1 comentário:

  1. Excelente comentário, Fernando!
    Subscrevo integralmente!

    Conceição Serejo (São)

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