Conheci o Cón. Ferreira dos Santos há sensivelmente 20 anos. Foi em Fátima, num dos primeiros encontros nacionais de pastoral litúrgica a que fui. Não me lembro exactamente se no primeiro ou no segundo, pois a ideia que tenho é que da 1ª vez ele estava doente e falou sentado, numa postura muito recolhida, mas da 2ª vez estava já com todo o seu vigor, revelando-se uma pessoa extrovertida e muito determinada. Talvez nem tenha simpatizado à partida com essa forma de estar, mas foi sol de pouca dura, pois rapidamente passei à admiração, que se mantém até hoje, não obstante a controvérsia que, como é próprio das grandes figuras, gera sempre à sua volta.
A aproximação fez-se num jantar em Fátima, mas depois fui conhecer o Cónego no seu ambiente natural, o Porto. Fui a uma missa nova na Igreja da Lapa, onde é reitor, e deu para perceber que estava numa igreja diferente, onde é patente a ordem, a organização, a limpeza e onde todos os domingos a igreja se enche de hora a hora para as várias missas.
Voltei pouco depois, com mais tempo. Pude ver a diversidade das missas, onde havia um coro polifónico na missa solene, um coro gregoriano na das 11h, um coro das empregadas do hospital na de domingo à tarde, um coro de crianças e flautas na de sábado… uma sinfonia. Conheci minimamente as instalações, onde havia um órgão de tubos para estudo.
O cónego levou-me à Sé, onde pude ver o magnifico órgão instalado em 1985 sob a porta da entrada, mas também os dois órgãos históricos da capela-mor.

Mas o mais relevante era mesmo o trajecto do cónego. Depois dos estudos de música em Portugal foi para Munique estudar Música Sacra como bolseiro da Fundação Gulbenkian. Já era padre nessa altura e essa oportunidade abriu-lhe completamente os horizontes.
Quando voltou, ‘negociou’ com o Bispo do Porto, na altura ainda a mítica figura de D. António Ferreira Gomes um conjunto de iniciativas que entendia ser necessário empreender, para renovar a música litúrgica na diocese. A saber:
• Criar um coro de referência para a Sé, um coro polifónico formado de pessoas preparadas de toda a diocese, para cantar nas celebrações do bispo e dar a conhecer, em concertos na Sé e um pouco por toda a diocese, o património coral sacro;
• Organizar encontros de preparação abertos aos membros dos coros paroquiais em vários pontos da diocese;
• Criar um Boletim de Música Litúrgica, para dar a conhecer novo reportório;
• Dotar a Sé de um grande Órgão de Tubos;
• Criar uma escola Diocesana de Música Sacra;
• Promover a reforma da música nos seminários diocesanos.
Tudo isto era já uma realidade consolidada quando o conheci, e por isso passei a seguir atentamente o que se fazia no Porto. Assinei a Voz Portucalense, por onde me guiei sempre para a preparação dos tempos litúrgicos e das celebrações, assinei o Boletim de Música Sacra, do qual o coro cantou, seguramente mais de metade do reportório de 150 números, e passei a ir ao Porto com regularidade, para me refrescar.
Sei que em Lisboa fiquei conotado com esta ligação, mas a alternativa era o deserto ou a ficção.
Continuei também a acompanhar o cónego nos encontros nacionais de liturgia e, mais de perto, nos cursos de música sacra de Fátima. Por iniciativa sua, fui convidado por duas vezes a falar nesses encontros, e o coro foi convidado para cantar na Sé de Lisboa no âmbito de um congresso internacional sobre órgãos, e também para dar um concerto no encontro da pastoral litúrgica de 2008, que não pode aceitar por ser a seguir à digressão a Roma e a gravação de um CD.
Fui várias vezes aos concertos do aniversário do órgão da Sé do Porto e assisti à

À medida em que viajava pelo estrangeiro, parecia-me sempre que a igreja da Lapa não ficava em Portugal, mas algures na Suíça, na Áustria, na Alemanha ou em Inglaterra, e isto não apenas pelo esmero com que a igreja se apresenta mas pela sua organização, pela sua vida cultual e cultural, constituindo-se num pólo de atracão eclesial em toda a zona do Porto.
No início dos anos 90, o Cónego foi responsável pelo envio de vários jovens a estudar na Alemanha, onde fizeram os seus estudos superiores em Órgão, Direcção Coral e Composição. Alguns foram meus colegas e/ou professores nos cursos de Fátima. Mais tarde foi responsável pela criação dos primeiros estudos superiores de Música Sacra em Portugal, ao criar a Escola das Artes, na Universidade Católica, com estudos superiores em Música, Restauro, Comunicação e Imagem, ilustrando uma visão estratégica e uma amplitude de pensamento infelizmente pouco comum.
Para além disto havia os grandes eventos: o cónego compôs várias cantatas populares para grandes efectivos corais e instrumentais, que apresentou em Lisboa (nos Jerónimos, na Igreja do Coração de Jesus, na FIL), em Fátima e, naturalmente, no Porto.
O que é que isto tem a ver com a história do coro de Belém? Tudo O coro cantou imenso reportório litúrgico de Ferreira dos Santos, mais do que de qualquer outro compositor; aderiu ao figurino dos cânticos em tríptico, com antífona para grande coro, refrão e estrofes para pequeno coro, um esquema que cultivou e promoveu e com o qual o coro cobriu grande parte do ano litúrgico; teve acesso a reportório de outros compositores publicados no Boletim, com destaque para Fernando Valente e Fernando Lapa (com este último teve mesmo, podemos dizê-lo, a máxima identificação no que respeita a música coral litúrgica em português); inspirou-se na Lapa (como noutras igrejas do estrangeiro) para a prática musical litúrgica que promoveu em Belém.
Esta nota tem, como se percebe, uma acentuada marca pessoal. Sem conhecer o Cón. Ferreira dos Santos eu talvez não tivesse sonhado o que sonhei, e tentado tornar alguns sonhos realidade. Sem o seu testemunho talvez nunca tivesse acreditado que a música sacra tem um papel determinante e que é dever da Igreja em primeiro lugar, e não do Estado ou de qualquer outra entidade, reconhecê-lo, promovê-lo e estimá-lo (isto é válido para o património físico, como os órgãos, e para aquele mais imaterial que é a música quando se faz e o património humano que são as pessoas que fazem a música!). De facto, durante este tempo todo acreditei na Igreja com letra grande, acima de qualquer paroquialidade, e no extraordinário potencial evangelizador da Música.
Se Portugal tivesse tido, neste tempo, pelo menos 10 pessoas como esta na música sacra, a realidade seria bem diferente e o futuro bem mais encorajador.

Excelente comentário, Fernando!
ResponderEliminarSubscrevo integralmente!
Conceição Serejo (São)