quinta-feira, 15 de julho de 2010

Os três cónegos

Este blogue pretende ser uma leitura sobre história do Coro de Santa Maria de Belém, centrada na sua actividade, mas referindo também pessoas, instituições e acontecimentos que influenciaram essa história e/ou a forma como os promotores do coro conceberam e concretizaram o projecto.
Hoje falamos de três padres que foram determinantes na minha abordagem da Igreja, da Liturgia e da Música, e, dessa forma, da visão que fui construindo e prosseguindo sobre o papel da Música na Liturgia. Refiro-me ao Cónego Henrique Canas, Pároco de Santa Maria de Belém durante a minha juventude e primeiros anos do Coro de Santa Maria de Belém, ao Cónego José Ferreira, figura incontornável da reforma litúrgica em Portugal e responsável durante décadas pela música na Sé de Lisboa, e, finalmente ao Cónego Ferreira dos Santos, Reitor da Igreja da Lapa, no Porto, e Director do Serviço Nacional de Música Sacra.
Por mera curiosidade, reparo, ao juntá-los, que são três cónegos, mas esse é apenas um detalhe sem qualquer relevância para a mensagem.

O Pe. Canas chegou a Belém depois de ter sido responsável pela Catequese a nível nacional durante largas décadas e também no Patriarcado era uma figura respeitada pelas tarefas desempenhadas e pelo espírito empreendedor. Era um homem muito simples, talvez simples de mais para uma igreja e para uma comunidade tão complexa como a de Belém, mas era um homem genuíno, autêntico. Dizia o que pensava e ia directo ao que queria. Não perdia o seu tempo a ouvir e a promover facções, a protelar decisões ou a promover qualquer tipo de paz podre.
Tinha uma visão verdadeiramente eclesial da Igreja, passe a redundância, cujos mandamentos fundamentais ainda hoje ecoam das suas homilias, práticas e por vezes até incómodas.
Da Liturgia tinha também uma visão directamente bebida do Concílio, que retomara as fontes no que respeita à dimensão celebrante da assembleia, contra uma visão centrada no sacrifício e numa delegação quase total da assembleia na figura mediadora do sacerdote. Mas não se pense que tinha da Liturgia uma ideia demasiado trivial, muito pelo contrário. A Liturgia era uma acção sagrada, solene, que exigia determinadas condições ou requisitos. Ainda me lembro de ter sugerido por mais de uma vez a um salmista que não fosse para o altar em ‘mangas de camisa’ e chegava a emprestar o seu próprio casaco para que aquela lacuna fosse rapidamente superada.
Foi pelas suas mãos que conheci as primeiras revistas de apoio à preparação da liturgia, a que recorria semanalmente - a revista Celebração Litúrgica, cuja assinatura me oferecia, e uns fascículos espanhois e franceses que assinava e partilhava.
Recordo o seu entusiasmo a organizar as peregrinações, a densidade com que preparava e celebrava a Semana Santa e as múltiplas acções de formação em que empreendeu com outros padres, como a Escola de Leigos. Acho que era conhecido pela Universidade Popular Canas.
Do ponto de vista pessoal aprendi com Pe. Canas o desprendimento, a entrega e a dedicação à Igreja. E o coro nasceu nesse espírito e no contexto de uma forte valorização da Liturgia. Referia-se muitas vezes à figura tutelar de Mons. Pereira dos Reis de quem tinha sido aluno, tal como o Cón. José Ferreira.

Não me lembro exactamente de como conheci o Padre Zé Ferreira, como toda a gente o conhece. Lembro-me de um Pontifical na Sé, de um encontro de Liturgia para Jovens na Casa de Retiros na Buraca e lembro-me de, ainda antes da fundação do coro, ter organizado uns encontros paroquiais de Liturgia com o Pe. José Ferreira, quando fui responsável nesse sector no Conselho Pastoral Paroquial. À época estava em Belém um seminariasta dos Olivais, que fez a ponte, e como tinha sido colega do Prior, foi fácil convencê-lo.
O Pe. Zé Ferreira tinha uma forma de falar que me arrebatava completamente. Imensos detalhes históricos, um grande conhecimento da Liturgia, uma grande paixão pela reforma e um sentido de humor imbatível, faziam das suas intervenções momentos únicos, que passavam depressa demais. Depois ouvi-o com o máximo interesse nos encontros nacionais de pastoral litúrgica e no curso de música sacra, em Fátima.
Para além de todo o pitoresco que as suas comunicações sempre contemplavam, o Pe. Zé descrevia a Liturgia antes e depois do Concílio, como quem participou numa revolução e ainda saboreava a Primavera. As suas descrições da Vigília Pascal depois de restaurada eram arrepiantes.
A Páscoa, no sentido mais lato (da dimensão pascal de toda a Liturgia), os Ministérios Litúrgicos e a Assembleia Celebrante foram os seus temas-chave. Dizia: «Está, portanto, condenada a teoria, tantas vezes praticamente aceite, de que aos actos litúrgicos, sendo como são de ordem sacramental e valendo como valem por si mesmos, lhes é indiferente a atitude da comunidade. Não, a liturgia não é algo de alheio ao mundo humano. A liturgia é acção divina, mas realizada entre os homens e a favor dos homens. Por isso, tem de ser entendida, sentida, vivida pelos homens. E estes homens são a comunidade cristã.»
A sua visão da Música Litúrgica decorria desta visão da Liturgia. Ficaram célebres as missas transmitidas pela rádio em gregoriano, que dirigia nos anos 50, mas veio a encontrar na música do Padre Manuel Luís a estética que conciliava a nobre simplicidade das ambiências modais com o canto em vernáculo, acessível, em geral, à assembleia.
O seu contacto directo com o coro resumiu-se a uma vez em que o convidou para a festa de S. Vicente e o dirigiu no Pontifical(ver post 2010-01-22) mas sei que seguia o nosso trabalho com alguma atenção e interesse.

Este quadro não foi superado, mas foi profundamente desenvolvido no contacto com o Cón. Ferreira dos Santos, de que falaremos a seguir.

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