sexta-feira, 2 de julho de 2010

Vestes corais

Um traço característico dos agrupamentos musicais (coros, orquestras, grupos de música de câmara) é a forma como se apresentam vestidos nas suas apresentações públicas, pois isso diz muito sobre a forma como encaram a sua actividade.
O Coro de Santa Maria de Belém tinha dois tipos de vestes corais, as que utilizava nos concertos e as que utilizava nas missas e outras celebrações litúrgicas. Só esta simples distinção já ilustra bem que para o coro estas actividades eram bastante diferentes, nos seus objectivos e na sua concretização.


Quanto às vestes de concerto, nada de muito significativo a registar. O coro começou por se apresentar de roupa escura, com as senhoras de preto e os homens de fato escuro.

O fato dos homens evoluiu para smoking (estreia num concerto em Santarém a 4.Out.1998) e o das senhoras, primeiro para um conjunto saia preta até aos pés e blusa cinza/prateada e já no último ano para um conjunto saia preta, com blusa preta e casaco azul dourado. Os modelos nunca são totalmente originais, há sempre uma inspiração e este último foi inspirado pelas roupas do RIAS Kammerchor de Berlim, embora se tenha trocado o bordeaux pelo azul do mar.


Até aqui, nada de muito diferente do que se passa com outros coros em Portugal. A diferença significativa veio com a introdução de vestes corais na liturgia.
Qualquer pessoa habituada a viajar não estranha minimamente que um coro se apresente numa igreja com vestes corais. Em qualquer país da Europa ou nos Estados Unidos, o que seria de estranhar é que um coro se apresentasse a cantar numa missa ou numas vésperas como se os seus membros fossem para o trabalho, para as compras ou para a praia. Qualquer pesquisa na internet comprova isto em poucos minutos. É só procurar o coro de uma catedral ou de uma igreja maior (e nalguns países também as pequenas igrejas do campo) e conhece-se logo uma diversidade de vestes …..
E foi precisamente pela importância da Igreja dos Jerónimos que demos esse passo. Sempre nos recusámos a ver os Jerónimos apenas como um monumento notável onde por acaso se celebram missas. Pelo contrário, e tendo como exemplo as boas práticas dos outros países, sempre ambicionámos para aquela igreja práticas eclesiais dignas daquele espaço único, para que atraísse não apenas pelo edifício mas pela qualidade da sua liturgia e de outras acções a ela ligadas.
Avançámos para as vestes precisamente aquando do restauro da capela mor onde o coro cantava. Durante o seu restauro cantámos na capela norte do transepto, mas constituía uma preocupação constante a forma como as pessoas se apresentavam ao domingo para cantar no coro, umas com roupas mais exuberantes, contrastando com as mais modestas, outras com roupa a menos… Quando a capela mor foi destapada e se apresentou em todo o seu esplendor, percebemos que não deveríamos voltar para lá vestidos desta forma.
Foi aí que se ousou inovar no contexto português, passe a imodéstia. As fontes de inspiração não faltavam, mas não queríamos adoptar os modelos mais tradicionalistas com batina e sobrepeliz. Fomos para um desenho muito próximo do utilizado pelos cantores da Notre Dame de Paris, com linhas sóbrias e optando não pelo azul, mas pelo vermelho, por nos parecer uma cor mais próxima do contexto litúrgico.

A ideia foi proposta ao coro com muita cautela, apresentando-se o modelo em plena capela mor, para um melhor entendimento do objectivo a atingir. Avançou-se também, como não poderia deixar de ser, com conhecimento e total aprovação do Pároco. A adesão de todos foi grande e a receptividade da comunidade foi bastante satisfatória.
Na altura tínhamos também consciência de que esta mudança tinha de ser compatível com o reportório, pois não fazia qualquer sentido colocar o coro num local específico, vesti-lo desta forma e depois cantar cânticos da assembleia.
E este é o ponto. Há quem não goste de fardas, porque lembram excesso de ordem, autoridade, etc. e há quem argumente que dão nas vistas. Mas, pelo contrário, os uniformes, tal como o nome indica, dão unidade à forma (não ao conteúdo) e têm o grande mérito de ilustrar facilmente a tarefa ou o papel de cada um. E quanto a dar nas vistas, os uniformes não permitem que se exibam diferenças de estatuto social, sinais exteriores de riqueza ou pobreza, etc. Só dão nas vistas na 1ª vez. A partir daí fazem-nos associar o significante e o significado – aquilo é o coro.
Mas o coro não faz parte da assembleia? Faz. Então porque é que se veste de uma forma diferente? Porque tem uma função diferente. O coro faz parte da assembleia na medida em que se forma a partir dela para enriquecer a sua participação na acção litúrgica, mas não faz o que faz a assembleia, faz mais, exerce um ministério litúrgico específico, que não é um adorno mas faz parte integrante da acção.
Por vezes referia-me às vestes do coro junto de um liturgista como as nossas vestes ‘para-litúrgicas’ (por oposição às vestes dos ministros ordenados), mas ele corrigia-me «as vossas vestes são efectivamente vestes litúrgicas porque estão associadas ao desempenho do vosso ministério litúrgico».
As vestes vermelhas foram estreadas em 2000, no dia do 10º aniversário do coro e a partir daí a imagem do coro de Belém passou a estar fortemente identificada com este elemento distintivo. Atendendo a que foram pensadas para aquele coro concreto e a sua interacção com os Jerónimos, passámos a usá-las também nos concertos nos Jerónimos, atendendo a que esses concertos tinham uma dinâmica de concerto espiritual, associada a uma quase ressonância da liturgia.
Guardadas na sacristia, sob a protecção de Santa Cecília, as vestes marcavam as fronteiras do entrar e do sair da acção litúrgica, a entrada e a saída do espaço onde a acção decorria, passando o coro a integrar também o cortejo de saída e algumas vezes o de entrada.
Nas actividades no exterior, a bagagem contemplava sempre as vestes de concerto e as vestes litúrgicas, controladas com listas, onde não faltavam indicações sobre a altura e a largura de reforços, solistas, etc.
Em todo este processo teve um papel fundamental a coralista Donna Howard, que desenhava e redesenhava as peças em função das ideias dadas e assumia depois toda uma zelosa vigilância sobre bainhas, ajustes e a limpeza regular da indumentária.

1 comentário:

  1. Ousar ser ambicioso. Fundear essa ambição em trabalho árduo e mostrar excelência. Fazê-lo apenas com o esforço e dedicação de pessoas e durante anos a fio.

    Raro, raro, raro. Tiro-vos o chapéu.

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