quarta-feira, 28 de julho de 2010

O lugar do coro

Há precisamente um ano, falei no Encontro Nacional de Pastoral Litúrgica, nas vésperas da digressão a Inglaterra. Evitei sempre referir, nestas ocasiões, o caso concreto do coro de Belém, mas não dos factores que me e o influenciaram (referências, inspirações…). Por isso arrisquei ilustrar a minha apresentação com um exemplo distante da nossa realidade, mas exemplar para o que pretendia demonstrar, o caso da Catedral de Westminster.
Parti da questões de fundo do encontro: Como é bom cantar. Cantar porquê? Cantar o quê? Cantar como? e fiz a aproximação à realidade dos coros: Como é bom cantar num coro – O coro ajuda-nos a perceber e a vivenciar a ligação da Liturgia à Vida. O coro é um instrumento musical, mas feito de pessoas. É um grupo social e humano, com tudo o que isso implica. Porquê cantar em coro? Para que serve um coro? O que canta o coro? (características da música coral). Como canta o coro? Com arte e com alma… Podemos dispensar a alma? E a arte? De que falamos quando falamos de arte?


A minha mensagem principal era esta: «O coro é parte da assembleia, insiste-se, e está correcto, no sentido em que o coro emerge da comunidade, e por isso faz parte dela, e assume um papel muito concreto de a servir. Mas o coro é, desde sempre, um grupo especializado, que assume partes musicais que lhe são próprias, que a assembleia não pode nem deve assumir. No fundo, se fizessem a mesma coisa, não precisaríamos de um coro e de uma assembleia. »
«Defendo por isso que o coro, embora formado a partir da assembleia, é uma realidade distinta desta, e que a participação do coro não tem de impedir a participação da assembleia. Pelo contrário tem de apoiá-la. Neste caso, usamos portanto, palavras distintas para conceitos distintos, realidades distintas.»
Propus então uma viagem virtual à Catedral de Westminster em Londres, uma igreja com cerca de 100 anos e com um dos melhores coros do mundo, tão antigo, aliás, como a própria igreja, de acordo com o projecto dos seus fundadores que constituiram o coro quando se faziam ainda os alicerces do templo.


Para esta viagem, recorri ao discurso directo do Master of Music, o Maestro da Catedral, Martin Baker, a partir de uma comunicação que tinha feito no Vaticano, a 5 de Dezembro de 2005, a convite da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
Baker começa por citar o Catecismo: «Pela Liturgia da Terra, participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste, celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos, nos dirigimos […];por meio dela, cantamos ao Senhor um hino de glória, com toda a milícia do exército celestial.» CIC 1090
Depois uma citação da Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia: «Guarde-se e desenvolva-se com diligência o património da música sacra. Promovam-se com empenho, sobretudo nas igrejas catedrais, as «Scholae cantorum». Procurem os bispos e demais pastores de almas que os fiéis participem activamente nas funções sagradas que se celebram com canto na medida que lhes compete.» SC 114
E explica que a frase latina ‘actuosa participatio’ incorpora tanto o aspecto contemplativo como o aspecto activo da participação, recorrendo ao livro Cantai ao Senhor um cântico novo (infelizmente nunca traduzido para português), do Car. Ratzinger, em que se lamenta que a frase conciliar ‘participação activa’ tenha sido erroneamente interpretada como activismo externo ou exterior.
Quanto à Catedral de Westminster, Baker afirma que aí o tesouro da Música Sacra é preservado através de um coro que participa diariamente na liturgia (vésperas e missa). Tem noção de que se trata de uma situação única e excepcional, pois o coro é um elemento essencial, sempre presente na liturgia da catedral.
Citando Raztinguer, diz que «o fim da Liturgia é auxiliar a Palavra de Deus a efectuar uma maior compreensão dos mistérios da Fé. A participação na Liturgia é uma participação na Liturgia Cósmica. Quando o Logos de Deus é comunicado, necessariamente pelos meios imperfeitos da linguagem humana, o essencial da mensagem permanece inatingível e ininterpretável. Os dois modos do atingir são o silêncio e a música. A Música Sacra torna o Logos acessível à assembleia ao mesmo tempo que eleva os ‘corações ao alto’. Como meio para a Palavra de Deus, ela permite alcançar uma maior expressão das verdades contidas no texto, uma real participação interior e uma participação activa na liturgia sagrada.»
Desde a fundação da Catedral, em 1903, liturgia e música foram duas realidades mantidas em prática, com o mais alto nível possível. A Música foi sempre vista como parte integrante da Liturgia.
E Baker exemplifica como a música do coro pode expressar de forma mais completa a intencionalidade e o sentido dos textos sagrados.
O Kyrie, por exemplo, nos ritos iniciais da missa. Na frase ‘Senhor, tende piedade de nós’ há uma aceitação de que somos pecadores suplicantes que precisam da misericórdia divina, confiantes que as nossas preces serão ouvidas. Mas o sentido das palavras do Kyrie é profundo e dificilmente assimilado se simplesmente ditas.
Não é fácil atingir esse sentido, se nos temos de lembrar de uma frase melódica que acaámos de ouvir e temos de repetir, seguindo ou não uma folha de cânticos por exemplo. Também a simples recitação do texto permite pouco ou nenhum lugar para a contemplação interior do mistério. Pelo contrário, a tradição de cantar um Kyrie polifónico, explora os sentimentos do texto, enquanto dá o tempo necessário para a absorção completa das suas implicações para os fieis.
O maestro confirma que, «de acordo com o estatuto especial que lhe é atribuido, o canto gregoriano e polifonia renascentista são os 2 estilos que constituem a maior parte do reportório do coro da catedral.Porque esta música reflecte hoje como quando foi composta a mesma relevância do texto. A este tesouro juntamos música apropriada dos períodos barroco, clássico, romântico e obras propositadamente encomendadas aos compositores dos nossos dias.»
E continua:
«Fazemos questão de assegurar que o coro é visto como parte integrante da liturgia. O coro e os ministros entram em conjunto enquanto o coro canta o introito gregoriano do dia. Os elementos do coro são vistos pela assembleia enquanto se dirigem ao local onde desempenham a sua função litúrgica. Através do canto na procissão de entrada, a própria palavra é iluminada pela música e pela acção.


O coro canta num retro-coro atrás do altar principal, no extremo Este da Catedral.
O coro da catedral não poderia ser mais diferente de um coro de concerto.
Enquanto que é visto no introito a caminho do seu local, não é completamente visível durante a missa e por isso não é uma distracção para os fiéis. O maestro está escondido por detrás de um ecran de mármore que o separa da zona do altar.
Mas mais importante, a música que o coro canta, embora de grande mérito artístico, é oferecida no contexto da liturgia, permitindo aquela compreensão de que se alimenta a verdadeira participação da assembleia.»
No entanto, de forma a assistir os fiéis na sua participação e para que a liturgia se torne um veículo bem sucedido da palavra, o sacerdote tem de partilhar estes objectivos e cantar os textos da missa para criar unidade na celebração.
Muitas missas que se dizem cantadas não o são. Quando muito são missas com cânticos.
« A natureza essencial da música na Liturgia deve focar os textos da missa como 1ª preocupação para o tratamento musical. No entanto, a prática generalizada das celebrações corais que historicamente são grande parte da tradição litúrgica romana desapareceram quase por completo. Mas a Igreja precisa de redescobrir esta tradição, tanto no papel da música sacra como no papel e nível de excelência dos seus coros.»
E citando de novo o Papa: «Através do coro é conseguida uma maior transparência no louvor dos anjos e por isso uma mais profunda e interior adesão ao seu canto, do que muitas vezes seria alcançado pela aclamação e canto da assembleia.»
Embora o coro da catedral não seja um coro de concerto, os seus membros são músicos profissionais. Os rapazes vivem e estudam na escola do coro da catedral.
Os tenores e os baixos são cantores profissionais. E as razões para isto são claras: «Esta música potencialmente transcendente, poderia ser afectada por uma execução de nível inferior e perder parte do seu efeito. O coro formado apenas na comunidade dos fiéis é provavelmente insuficiente para executar esta música de forma adequada à catedral que, como sede da diocese, é vista como um marco de excelência! No concreto, a prática diária de vésperas corais e missa seria impossível à base de voluntários.»


«Finalmente, temos de concordar que o esforço para levar a liturgia terrena ao encontro do divino é digno dos mais elevados padrões possíveis.
À luz deste objectivo, é verdade que apenas poucas igrejas estão em posição ou acham apropriado ter um coro profissional.
Existem outros tipos de coros de níveis diferentes que cantam exemplarmente em paróquias do mundo inteiro.
Muitos destes são capazes de iluminar a palavra de forma como descrito até aqui, mas é importante que as catedrais promovam a música ao mais alto nível para que o trabalho admirável dos coros paroquiais possa ser alimentado e suportado pela tradição catedralícia.»
Mesmo em Westminster há uma organização variada. Coros visitantes são regularmente convidados a cantar na catedral e o coro da catedral também faz visitas a outras igrejas. Além disso têm um coro de voluntários de toda a diocese que canta uma vez por mês na catedral. Há também um coro gregoriano voluntário, de vozes femininas. E promovem-se fins de semana corais abertos para cantar obras como o Messias.
E Martin Baker termina referindo que, de momento, as situações de excelência parecem ser isoladas: «Uma orientação mais clara da hierarquia da Igreja encorajaria e fortaleceria algumas instituições e a renovação de tudo aquilo que é bom.
Dada a direcção que a liturgia tomou, desde os anos depois do Concílio Vaticano II, talvez seja necessário reavaliar e propor estas directrizes à luz de 40 anos de experimentação.»

Com alguns exemplos musicais da própria catedral de Westminster, este discurso directo de Martin Baker foi mais que suficiente para fazer passar a mensagem que eu queria passar, com toda admiração e até algum choque que ela pudesse provocar no nosso contexto, e naquela audiência em particular.
E recorri a Santo Agostinho para um ultimo ênfase sobre a participação efectivamente activa: «Como eu chorei ao ouvir os vossos hinos, os vossos cânticos, as suaves harmonias que ecoavam pela vossa igreja! Que emoção me causavam! Passavam pelos meus ouvidos, derramando a verdade no meu coração.Um grande impulso de piedade me elevava, e as lágrimas rolavam-me pela face; mas faziam-me bem.» Santo Agostinho, Conf. 9, 6, 14
A reacção das pessoas foi bastante positiva e as perguntas pertinentes. Fiz ainda mais uma incursão ao aspecto do lugar do coro, demostrando plantas de catedrais, e tentando mostrar que não há soluções tipo e que o essencial e o acessório devem ser pesados, pelas partes envolvidas, em cada contexto em concreto.
O ponto de partida foi referir que em Português podemos usar a palavra coro, tanto para designar o grupo dos cantores como o lugar onde cantam, especialmente nas igrejas históricas (coro alto, coro baixo), mas os ingleses e franceses têm palavras diferentes. The Choir (cantores)/ The Quire (lugar onde cantam), La chorale / Le Choeur (idem).
Referi ainda que por toda a Europa os coros de igreja cantam com vestes corais, como distintivo de pertença ao grupo e à sua função, e ilustrei com fotos.
Mostrei ainda fotos dos Pequenos Cantores da Catedral de Regensburg, na Alemanha e num concerto ao actual Papa na Capela Sistina, do coro de Westminster em visita ao Papa João XXIII e da visita do Papa João Paulo II à Catedral de Westminster, posando com o coro.
No 2º dia falei de uma questão prática importante, o reportório do coro, que é uma parte importante da identidade de cada coro, mas que decorre antes de mais da sua da missão. Depois vim para Lisboa, pois nesse dia à noite tive o ultimo ensaio com o coro para Inglaterra e no dia seguinte partimos para a nossa última digressão.
Dois dias depois o Coro de Santa Maria de Belém cantou a sua última missa, precisamente no Quire da Catedral de Westminster em Londres. E um mês depois da digressão, o Pároco de Belém informava-me que o coro tinha de procurar na igreja outro lugar para cantar, pois a capela-mór ia ser devolvida à sua anterior função de presbitério.

2 comentários:

  1. Seria interessante pensar-se numa separação de palavras entre coro-lugar físico e coro-grupo de cantores. Este texto pede a existência desta separação, à semelhança dos exemplos citados para outros idiomas. Contacte-se um linguista, peça-se uma opinião sobre esta questão. Vá-se de novo ao latim, pegue-se na várias declinações da palavra origem para coro, examine-se as possibilidades. Em português há particular incidência de substantivos derivados de um tipo específico de declinação do latim original. Mas há mais possibilidades. Seria interessante levar isto mais longe.

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  2. Em seguimento do comentário anterior, coro vem de chorum, caso acusativo da palavra original em latim (via segunda declinação, segundo me dizem). Em português parece que é comum ser o acusativo a originar as palavras. Mas pode também ser o nominativo. O nominativo seria chorus, o que em português corrente daria corus (palavra grave). Assim, uma sugestão seria adoptar-se a designação corus para o local onde canta o coro na igreja, e coro o grupo de pessoas.

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